sábado, 8 de janeiro de 2011

O FORMIGUEIRO

















Introduziu o dedo anelar no orifício, sentiu arder, mas não se deteve, cutucou de um lado, cutucou do outro, sentiu o calor subir-lhe, continuou, forçou de um lado, agora, do outro, sorriu, nada mais, retirou o dedo, cheirou, introduziu sorrindo novamente, fez movimentos giratórios, movimentos que alargaram o pequeno e apertado orifício, sorria largado, com que um sem culpa de nada.O sol se firmava sobre sua cabeça, abertamente quente, estampado como que todo num céu extremamente azulado, desanuviado.Um cheiro de coisa azeda pairou no ar, retirou novamente o dedo, coberto por um musgo escuro, o cheiro era agora insuportável, mas não o suficiente para impedi-lo de continuar seu ato.
O odor atingiu a casa, espalhou-se pelos aposentos, encontrou a cozinha, o fogão à lenha, o cozido escureceu, na janela de fronte ao poço, as violetas murcharam, o cavalo no estábulo do outro lado do quintal de terra relinchou, o homem de joelhos tateava o chão desgramado, desgramado nesse sentido não vem da palavra desgraça s.f. 1 infelicidade 2 calamidade 3 falta de consideração, reconhecimento – desgraçar (v. trans. e pron.), desgramado não é pessoa desgraçada, o prefixo des – latino – neste sentido vem de ação contrária àquela de sentido primitivo, gramado vem de grama designação de várias plantas forrageiras, ornamentais ou medicinais, do latim gramma..., claro que todo cidadão campesino ou citadino sabem perfeitamente disso, o chão estava desgramado a tal ponto que parecia a ovelha nua de lã em verão prematuro. Pois bem, o homem tateava o desgramado chão, como quem o tateia a procura dos óculos, ou tostão caído, por fim, sua mão encontra novamente a elevação, após encontrar a elevação deparasse com o orifício por ele alargado.
Introduziu o outro dedo anelar, e em forma de boticão alargou mais e mais o orifício no topo do pequenino monte de terra, alargou tanto que foi o suficiente para introduzir sua cabeça até os ombros, depois disso em movimentos giratórios, como o inverso de um parto, entrou os ombros e o do tórax para as pernas foi tudo mais fácil.
Como se fosse uma enorme minhoca foi o homem pelos conduítes sob terra, alargando os pequeninos canais construídos pelas formigas minúsculas, quanto mais se contorcia mais descia e mais descia, até que por fim encontrou-se em uma enorme galeria privada de luz, seus olhos depois de dias submerso na escuridão da terra, deram-se ao costume e sua visão tornou-se gradativa, ao passo que como um animal de hábitos noturnos passou a enxergar perfeitamente, duas bolas amarelas pregadas ao rosto sujo de terra, quando fome sentia, roia as raízes, e se sede tivesse, a umidade da terra ao esfregar do corpo o saciava, na enorme galeria deparou-se com as formigas sentinelas, que depois de interrogá-lo o levaram até sua majestade.
Uma vez diante a majestade o homem, ou minhoca, ou homem-formiga, ou homem-minhoca, ajoelhou-se. Magnificamente lá estava ela com seu enorme útero, fértil, carregado do mais delicado brilho, vital, vida, cheia de um quer que seja de sedutor, ele sentiu mais e mais o cheiro azedo que sentira quando estava tateando o desgramado solo de sua vida, uma lágrima vermelha escorreu de seu enorme olho amarelo, a rainha caminhou desajeitadamente em sua direção, estendeu-lhe a mão e foram a parte privada.
Ele a cobriu, passaram o restante daquela tarde se amando, como dois seres repletos, transbordantes do mais delicado amor, afinal descera ele aos subterrâneos da terra para encontrar seu grande amor (isso me lembra Orfeu...), depois de algumas horas ela carregada de larvas caminhou à outro canto da cova, e lá os depositou, ele deitou-se de lado, sem perceber, e, adormeceu.
As crias famintas procuraram o alimento que a rainha, supostamente havia deixado, não encontrando se deparam com o pai, rei e genitor de seus transparentes corpinhos, e dotados da suma ignorância devoraram-lhe até os ossos.


Flávio Mello