sábado, 11 de agosto de 2012

TRANSILVÂNIA



A pequena Anna angustiou-se quando não viu ninguém mais à sua volta no quarto. Pulou da cama, apenas de camisola, apesar do frio e desceu. Seus cinco irmãos brigavam sobre a mesa enquanto Nora, a irmã mais velha, servia a sopa e ralhava ao mesmo tempo. Sentou-se em seu lugar e reclamou:
_Por que não me acordaram?!
Nora esbravejou:
_Quem é preguiçoso fica sem comer!
_Eu não sou preguiçosa! _rebateu Anna, malcriada.
Lá fora a neve cobria tudo de branco. Os homens andavam para lá e para cá, entretidos no trabalho, como se estivessem reformando a vila. Anna pulou da mesa e correu dizendo:
_Vou ver papai!
A mão firme da mãe, Eszter, a conteve.
_Nada disso! Você vai comer primeiro e se vestir. Se adoecer, quem vai perder noites de sono sou eu!
Mesmo irritada e chorosa, Anna volta à mesa. A mãe enche seu prato de sopa de carne. Pedaços de batata flutuam sobre o caldo avermelhado de paprika. A mãe lhe dá um grande pedaço de pão e ralha:
_Agora coma! E não saia daí sem ter limpado o prato!
A irritação de Anna passa aos poucos, a cada colherada no caldo pimentoso. Quando acaba, está rosada pelo calor do desjejum. Vendo que a pequena já terminou, Eszter a pega pela mão, lhe dá um breve asseio, e depois a veste. Em seguida, a mãe lhe entrega um pedaço de pão com carne de porco, envolto em uma toalha e diz:
_Dê a seu pai. Diga para não se esquecer de vir almoçar e não se embriagar com a pálinka.
Anna corre para frente da casa, onde está o pai, pintando uma grande cruz na porta, com sangue de carneiro. Ao ver a filha, Ferenc pára o trabalho a toma nos braços e levanta, festejando:
_Bom dia, pequena princesa! 
Anna ri com o gracejo, os beijos e as cócegas que o pai lhe faz, mordendo-lhe de leve. Ele então a põe no chão e termina o serviço pendurando um grande colar de alho na porta. Pega então seu lanche. Anna dá o recado da mãe:
 _Mamãe disse para você não se embebedar.
Ele ri e responde:
_Com este frio, vai levar vinte anos até seu pai possa se embebedar!
Ferenc senta-se então no pequeno banco de três pernas e come. Anna senta em seu colo e ele lhe dá um pouco de pão com porco. Quando termina, ele a pega pela mão e diz:
_Agora vamos passear um pouco.
As ruas da vila estão movimentadas. Homens andam para lá e para cá, carregando ripas de madeira, fachos de lenha, colares de alho e baldes com sangue de carneiro. Mulheres carregam baldes de água e pedaços de carneiro encobertos em panos. Ferenc cumprimenta os amigos enquanto passeia com a filha. Ao passar pelo sacristão, Ciprian, este lhe lembra:
_Não esqueça de ir à missa das seis, Ferenc, já está rosado de pálinka!
_Não me esquecerei, irmão Ciprian! Não me esquecerei! Mesmo que beba toda minha garrafa!
Em certo memento, Anna pede:
_Papai, vamos ficar aqui vendo o pôr do sol atrás das montanhas!
_Tudo bem, Anna! Mas não vamos nos demorar muito, logo teremos de voltar e ir para a missa.
Durante mágicos quarenta minutos, Anna vislumbra o sol se esconder dela _como se sorrisse marotamente _detrás das montanhas cobertas de pinheiros e neve. Quando a escuridão começa a cair, o pai a apressa:
_Vamos, Anna! Hora de ir à missa!
Sabendo ter perdido tempo, Ferenc prefere ir direto à igreja. Lá encontrou a esposa já com os outros filhos. Esta reclamou:
_Devia ter pelo menos passado em casa, para se assear para a missa!
_Cristo nunca rejeitou ninguém por sua aparência, lembra?
Ferenc então assiste à missa ao lado da filha, que nota que não apenas seu pai, mas  muitos homens sairam direto do trabalho para a igreja. Na hora da comunhão, Anna suplica:
_Papai, diz pro padre me dar a hóstia para comer também!
_Não, Anna, você só poderá fazer isso depois de sua primeira comunhão.
Acabada a missa, todos rumam para suas casas. A escuridão já cai sobre a vila. Apesar de se mostrarem apressados, os aldeãos conversam alegremente na rua, a caminho de casa. Ferenc conversa com o amigo, Tamás. Suas esposas conversam entre si e os filhos de ambos fazem algazarra atrás. Ao lado dopai, Anna ouve sua conversa:
_Será que Péter aparecerá entre eles? _pergunta Ferenc.
_Não sei, ninguém o viu desde que desapareceu, nem mesmo o velho Lajos, que mora na floresta. _responde Tamás.
Avistam então, deitado, meio escorado em uma das traves que apoia o teto da taverna, o bêbado Vilmos, entornando mais um longo gole de pálinka goela abaixo. Tamás brinca:
_Eles nunca fazem nada com ele, acho que não gostam de seu bafo!
_Ou do seu cheiro! _brinca também Ferenc.
Os dois por fim se despedem e se separam. Chegando em casa, Eszter ordena ao marido:
_Tire esta roupa imunda, que já esquentarei água para seu banho!
Enquanto o pai se banha, Anna e Friderika arrumam a mesa do jantar, enquanto Nora esquenta a sopa e o carneiro. Os três irmãos homens cuidam de fechar a estrebaria, para que o cavalo do pai e única vaca que possuem estajam bem agasalhados e seguros.
Por fim, a família senta à mesa e Ferenc faz a oração antes da refeição:
_Senhor, te agradecemos pelo alimento e a morada que temos e pela divina graça de tua proteção. Amém!
Todos então começam a comer alegremente. O ambiênte é calmo e feliz, bem diferente da animosidade do início do dia. Após a janta, as meninas ajudam a mãe com a louça e os meninos vão ouvir o pai contar suas estórias. Todos, por fim, se juntam em turno de Ferenc para ouvir suas pequenas aventuras de aldeão, até que Eszter decreta:
_Muito bem! Já ouvimos estórias demais, é hora ir deitar!
Apesar da queixa dos filhos, inclusive Anna, todos sobem. No quarto, no sótão, Nora ainda tem de ralhar com os irmãos menores, para que eles se aquietem e durmam. Por fim, o sono recai sobre todos, mas muito leve sobre Anna, que desperta com o soar do sino da meia noite. Como dormisse próxima à janela, entreabre a cortina e olha a rua. Com passos incertos, por vezes cambaleantes, olhando para o céu, como se adorassem a lua, chegam os vampiros. Homens e mulheres com as roupas rotas, por andarem como bichos pela floresta e pelos cemitérios. Seus rostos são muito pálidos e seus olhos apresentam olheiras arroxeadas. Dois deles, ainda jovens, se aproximam do bêbado Vilmos, que dorme a sono solto. Logo em seguida, dele se afastam, fungando como se tivessem sentido cheiro de peste. Vilmos ainda desperta brevemente e profere pequena queixa. Anna solta um leve riso. E os vampiros continuam seu cortejo pela vila, olhando para o céu, como que alucinados!...


Marcelo Farias. Ilustração: Brasov no inverno.

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