quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O FARMACÊUTICO


















Cresci numa farmácia, meu pai era farmacêutico. Eu "viajava" nas imensas estantes e prateleiras repletas de frascos com drágeas, pílulas, xaropes e cosméticos. Eu adorava cheiro de remédio. Nunca reclamei quando tinha de tomar pílulas. Ao contrário, adorava engoli-las. Aquelas coisinhas sempre tão "científicas e futuristas". Já os xaropes me pareciam mais tradicionais, século XIX. Costumava levar xarope Vick para tomar na escola, e adorava me embriagar com Biotônico Fontoura. Papai brigou várias vezes comigo, ao me encontrar recostado na parede, "entorpecido" pelo biotônico. Era o meu Láudano.
Sempre ajudei papai de bom grado na drogaria. Era capaz de passar o dia inteiro nela, fecha-la com ele, se fosse preciso. Fiz isso muitas e muitas vezes, abri e fechei a drogaria. Era mágico ver a lagarta subir. Triste, mas romântico, vê-la baixar.
Perdi minha mãe aos 9 anos, câncer. Sempre fui filho único e papai precisava muito de mim. Não me queixava, nunca me queixei. Aos 12 anos tive minha primeira "viagem": tomei duas pílulas de gardenal. Foi louco! Papai brigou comigo. Experimentei outros remédios. Alguns me deram dor de barriga, outros me fizeram vomitar, outros me acalmaram, outros mais... novamente me fizeram viajar.
Quando conheci minha primeira namorada, Pamela, a levei para meu mundo mágico: a farmácia. Por algum motivo ela gostou e namoramos cinco anos. Papai pensava que nos casaríamos, morreu pensando isso. Um avc o levou de repente, numa tarde, quando ela contava 56 anos. Estava colocando os remédios na prateleira. Quando ele caiu para trás, pensei que fosse um tolo acidente. Porém, quando cheguei no hospital com ele, o médico o mandou para a UTI. Pamela ficou comigo durante o enterro e depois dele. Não houve velório, não tinha dinheiro nem parentes próximos para isso. Meu namoro com Pamela acabou seis meses depois. Como papai, ela não gostava de minhas brincadeiras com remédios. Ela foi a única mulher decente com quem me relacionei. As que apareceram depois foram todas doidas de festa, nada mais.
Vendi a drogaria e trabalhei como estagiário em outra, enquanto terminava a universidade. Mas que nunca, eu experimentava remédios. Para aliviar a depressão pela perda de papai, tomava remédios de tarja preta. Para elevar o astral, tomava anfetaminas. Foi quando um colega de sala me apresentou o LSD. Foi como dar a varinha ao aprendiz de feiticeiro. Mas que nunca conheci _e reconheci! _minha alma!...
Depois do LSD, conheci a cocaína, a morfina e a heroína. Cocaína só usava quando bebia e em pouca quantidade. Morfina começou a se tornar um costume e heroína era difícil, mas apreciava muito seu efeito. Uma vez formado, aluguei uma casa onde montei um laboratório particular. Passei a sintetizar as drogas que conhecia. Não mais comprava drogas na rua, usava apenas as que eu mesmo produzia. Com o tempo, passei a vender para os amigos. Estes trouxeram mais amigos. O dinheiro começou a aparecer.
Comprei uma casa nova, espaçosa, com piscina, ótima para festas. Adaptei meu laboratório lá e dei festas onde lucrava horrores. Em meu jardim também fiz experiências. Fui um dos primeiros a produzir a cannabis hidropônica. Mal o extase se tornara mania na Europa, eu já o havia conseguido numa viagem à Holanda. Aprendi a sintetizá-lo e fui um dos primeiros a produzí-lo e vendê-lo por aqui. Minha vida era uma rave. Patrocinei bandas techno, contratei um dj, Jonas, para trabalhar em minhas festas. Quando não dava festas em casa, levava meus produtos para festas de amigos. Meu esquema era fechado, privado, por isso conheci muita gente famosa.
Minha vida foi uma viagem até 2003, ano em que passei de todos os limites e tive uma overdose. Havia aberto o dia com barbitúricos, me empolgado e tomado ácido, me empolguei mais ainda e cheirei cocaína. Tudo isso regado à álcool. Por fim, tomei uma dose de morfina e algumas horas depois, uma de heroína. Queria dormir e fui parar na UTI. Os médicos não sabem como escapei. Talvez tenha sido Pamela e sua aura de anjo. A reencontrei depois de muito tempo. Não sei porque ela resolveu aparecer naquela festa. Ficou até o final... e me levou para o hospital.
Comecei então minha recuperação. Vendi minha casa e o laboratório. Me acostumei a levar uma vida careta. Não sei se me casarei com Pamela, apesar de me dar bem com a filha dela, Astrid. Só o que preocupa minha mente agora... é que fui apresentado a um novo laboratório, de mágicas paredes de azulejo azul!... Imensas prateleiras repletas de frascos! A luz fluorecente chamando como neon. A empresa em que trabalho quer que eu produza drogas lá. Estou em 2010, tenho 56 anos... Um dia desses sonhei com papai.

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