segunda-feira, 29 de setembro de 2008

desrealização


montagens de palco à italiana
quadro emoldurado
retomam o infinito e é como se tivesse fim

todos sabem da necessidade
abarcam, aportam, não se importam
fechados a um cubo de madeira preparada
fingem viver

assim é que no teatro se dança
dançam a vida aqui encenada
isso é nada, mas vale a arte
artifício espaço físico tempo psicológico

dançar é não se matar
e dançam a chuva de engenharia
palco à italiana, caixa fria
de onde é possível todo disfarce

resta a opção de descer do palco
desrealizar a realidade
mas fica o medo do salto para a vida
a bomba, a fumaça, o disparate
range a madeira quando pisam
e é o confortável estar-se à elevada

não me venham com desculpas
vocês são os únicos felizes por natureza
recebem a paga justa pelo eximir-se
são frágeis, mas eternos

a verdade atrás da cortina é mais fácil

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Despedida do sonho




a Jacques Barcia


Tive um sonho que se despediu de mim,
Sussurrou um adeus sentido e caiu na vida
Deu a mão a uma esperança e partiu.
Sequer olhou para trás enquanto seguia
Deixando pedaços na estrada perdida.

Gritei.
Gemi.
Implorei.
Pedi.

De nada adiantou
E vi se afastar
Um sonho que se despediu de mim.

O “Corte”



... quando ouviu D. Firmina
um som trepido e cristalino,
que ela bem conhecia por
tê-lo muitas vezes escutado. (...)1


Capítulo II
Senhora
José de Alencar


E pressenti no mórbido e nácar sorriso,
O opaco cristalino...
A taça de Vinho Tinto;
Quebra-se, estilhaça-se, quebra-se...

e heis que surge um corte profundo que lhe rasga a boca,
e, o sangue rubro...

Mancha-lhe a camisa toda!


Flávio Mello

domingo, 7 de setembro de 2008

FIM DE TARDE

















Um dia sentei no teu colo,
no meio da rua.

Fui mais nua
que a rua

e nunca mais te vi,
nem nunca mais me despi.



Ivonefs.

sábado, 6 de setembro de 2008

Enquanto reza o terço



de Flávio Mello



Enquanto reza o terço caminha sob uma singela brisa, mas o suficiente para deixar seus cabelos úmidos, seus passos se espalham pela galeria, o som dos saltos do sapato de verniz, ora metódicos, ora descompassados, sente que está sendo seguido, olha para trás, nada, vira a direita no fim da galeria, desce uma pequena ladeira em direção ao ponto de trólebus, enquanto reza o terço.


Não sabe ao certo que horas são, talvez dez, talvez onze, pouco importa saber que horas iremos morrer, não é.


Ele desce, como já disse, em direção ao ponto onde tomará o coletivo, as poças d’água são como espelhos estilhaçados que aos pedaços se espalham por um chão grafite, as luzes artificiais são como anjos que cercam as pessoas trazendo conforto e segurança, menos para ele que sente o lobo que o segue, sente o cheiro de seu pêlo úmido, de seu hálito carnívoro, dá sinal de ok ao motorista que pára rente ao meio fio, Noite fria não, Sim senhor, como todas de início de inverno, Boa noite, Boa, caminha pelo coletivo que não estava tão cheio como de costume, alcança o meio, vê um acento vago, acomoda-se, percebe que após sentar-se, outro passageiro entra e passando por ele fica ao fundo.


Faz tudo, tudo o que faz é rezando o terço comprado na Igreja Nossa Senhora de Fátima em uma de suas viagens habituais pela fantástica Europa, um homem de intelecto maduro não é homem sem ter conhecido a Europa.


Reza o terço enquanto olha as árvores passando, reza o terço enquanto olha os carros passando, as casas, as placas de anúncio, as de procura-se, as de sexo, percebe ao lado uma senhora, disfarçadamente olha para o outro fingindo não vê-la, Os velhos sentaram a vida toda, ora, agora é a nossa vez, reza, prende o dedo num pai nosso, faz um pedido, tudo bem, Deus perdoa invasões territoriais à custa de sangue, por que não perdoaria um homem de meia idade que nega acento a uma senhora de idade, de outro modo, diga-se de passagem, de muita idade, reza.
Sente a pessoa sentada a sua frente levantar-se, com isso roçar-lhe a perna direita, Desculpe, pensou que o moço daria lugar a velha, mas não, uma delicada flor abriu suas cores revelando suas formas ao cultivador, e uma jovem lívida de cabelos negros se senta, sorri harmoniosamente para ele e recebe um aceno de cabeça, Boa noite, Boa noite, chove, É, bastante, percebe que a jovem carrega ao colo uma criança, É sua, Sim, minha filha, tem uma semana, E como se chama essa coisinha de Deus, Graça, Maria das Graças, como a avó que Deus a tenha, Amém, em meio a conversa ele sente que está sendo vigiado, mas por quem, porque sente os olhos perfurarem a nuca como estilhaços de ferro aquecidos, o sorriso da jovem o acalma.


Continua com suas orações, uma Ave Maria, um pedido, e continua.


A criança no colo da mãe denuncia a fome com um choro terrivelmente desafinado, o sensor materno é ativado e o mamilo libera gotas do suco vital umedecendo a camisa, deixando-a transparente, ele percebe o ato biológico e se ajeita para poder ver e apreciar melhor a cena, a moça com uma das mãos liberta o farto e vívido seio branco, adornado com uma delicada jóia rosa, e eleva a cabecinha da criança ao prazer alimentício, ele por sua vez sente o membro mover-se dentro das calças, sempre carrega um lenço no bolso do paletó, porém dar a mãe tal segredo acabaria com aquela imagem festiva aos seus olhos, os lábios ainda por formar da criança sugando aquele seio delicioso, o cheiro era sentido como um buquê de flores após serem colhidas, o membro se contorce querendo liberdade, seus lábios queriam ser os da criança, suas mãos queriam ser as da menina, pára seu Pai Nosso, o suor desprega de sua testa, o rosto ruboriza, os lábios tremem, e uma mancha seguida de um orgasmo traumático surge, ninguém percebeu, ninguém, aliviado respira, retira o lenço do bolso e seca as gotículas do rosto, a moça vê o lenço, ele lê em seus olhos, entende os pensamentos da jovem, percebe que passara do lugar onde deveria ter descido, puxa a sineta estrangulando-a, caminha inquieto à porta, a moça o segue com os olhos, Será que ela viu a mancha gigantesca em minhas calças, será que percebeu que eu olhava seu seio, a porta abriu, o sentimento de culpa não era maior que o desconforto sentido por estar sendo seguido, Paranóia minha, desce sorrindo, continua a oração.


Enquanto o coletivo se afasta sua respiração se acalma paulatinamente, percebe que não estava sendo seguido, que a moça não o percebera, joga o lenço em um latão de lixo, e como um passe de mágica um temporal cai sobre suas costas, olha para trás e alguns metros à frente o coletivo pára, desce o que parece um homem de estatura colossal, vira-se e aperta o passo, sabe que é ele que o segue desde que saira de casa, sabe que ele é quem o olhava dentro do coletivo, a chuva castiga a cidade, os vapores desprendem-se das casas, dos carros, das bocas-de-lobo, reza com mais fé, será que é fé ou apenas modismo, apenas por ter um pino onde se possa segurar, reza com mais força, está prestes a terminar o terço, sente o cano frio do revolver encostar-lhe à nuca, sente o gosto do chumbo, o cheiro do ódio, o sabor do sangue, não pára de rezar, não pára de pensar na moça, na criança, no seio, no coletivo, a mancha de esperma na calça, que agora a água da chuva misturou como um rio de milhares de crianças afogadas, sente a morte beijar-lhe a testa que outrora estava lavada de um suor pecaminoso, sente o dedo no gatilho, a bala percorrer o cano, penetrar-lhe o crânio, perfurar o cérebro, cai antes de dizer amém.

in Seleção Natural

..........


Flávio Mello


Escritor, Palestrante, Professor e Editor.


Nascido em 1978 na cidade de São Paulo, capital, cidade onde se criou e vive. Casado com Rosimeire da Silva Mello, Bióloga e Artista Plástica, com quem tem uma filha, Alice nascida em 2006.


A literatura para o autor:


"A literatura já não me consome como outrora, já fui mais obcecado por essa entidade filosófica e amórfica, desviei o foco: minha loucura e dedicação agora são minha esposa e minha filha. No entanto, aprendi com isso que posso criar uma literatura mais prosaica, e ao mesmo tempo profundamente preocupada, voltada à realidade em que vivo, ou que gostaria de viver. A literatura, hoje, apenas soma, não mais me dilacera! Haverá um dia em que o que escrevo deixará de ser sonho, passará a ser verso e permanecerá eterno como o vento, a brisa, o sonho... o amor!”


Obras:


· Autor do livro de contos – SELEÇÃO NATURAL, Publicado em abril de 2006 pela Ed. Espaço Idea em Guarulhos;


· Autor do conto O PILÃO, participando de uma coletânea nacional, ENTRELINHAS;


· Escreve – para diversos sites na internet;


· Tem três outras obras escritas (coletânea de contos) a serem publicadas;


· Finaliza o segundo livro de contos – AMAR – SÓ SE FOR ARMADO (título provisório);


· Atualmente se dedica ao seu primeiro Romance Infanto-juvenil (Título provisório: O Menino sem Face).


Mais sobre o autor:


http://flavio-mello.blogspot.com/


http://vervetente.blogspot.com/


semanalmente em:


http://www.gostodeler.com.br/curriculo/377/flavio_mello.html


HOSTIL

















Súbito,
compreendi o que havia em tua voz:
era somente o inverno.

Tua voz sibilava como o vento de junho
e tinha a mesma imóvel agressividade
das lâminas de gelo.

Súbito,
o entendimento me atingiu:
a voz hostil

rompeu os elos

e o que havia

de ti em mim

morreu.
Betty Vidigal

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

LÂMINA PARA O MENINO NU























Doura um colar de ossos
na tua tormenta

e o trânsito desta fome
desola jugulares.

O ranger da tua arquiteura
arruinou meu sorriso.

[Meu coração
no retrato 3x4
lambe tua porta].


Rita Medusa.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O Beija-flor

Lá está, bela e plena
a doce flor perfumada.
Ela se abre e gentilmente
inunda-se de néctar.
Nectar doce, envolvente,
que aguça o meu paladar.
Néctar doce, excelente,
que saliva a minha boca ávida
para as pétalas rosadas beijar.
Ah, e quando os meu lábios
tocam os láibios da flor...
Como mágica, um fogo
nos envolve plenamente.
Então, ela toda estremece,
sorri e se contorce contente
com o beijo lúbrico que dou.
Por fim, com um olhar pleno,
satisfeito e indecente,
ela me agradece num frenesi
com um espasmo molhado de amor.