domingo, 31 de outubro de 2010

DES-



















Despertei
(ou ainda dormia, não sei se adormecido, entorpecido, recoberto por náuseas)
Des-per-tei
Apartei-me.


Sai aos poucos de mim... meu corpo foi ficando
Eu ia levitando, eu estava ali, deitado.


Ouvia uma música de fundo, melodias sacras, cantos gregorianos, não sei precisar, as melodias de fundo barroco, quem o sabe, eu estava só, ninguém para me ajudar a decifrar. Ergui-me de mim mesmo, uma película esbranquiçada, transparente, como que um fantasma. Levitei-me, levitei sobre o quarto de dormir, sobre os livros jogados pelo chão, garrafas de cerveja, copos vagabundos e não taças (o que seria mais poético), velas, guimbas de cigarro... cinzeiros sujos, restos de mim e de meu vicio. Levitei sobre as folhas de papel amassados, pensamentos descartados, atravessei a porta, e o vento me levou como um lençol quarando no terreiro.

Despertei-me.
Não pertenço mais a mim.
Não.



Flávio Mello

sábado, 30 de outubro de 2010

A SAGA DE ZÉ TEMBRINO E O ORÉGANO COR DE ROSA



















Zé Tembrino
o mensageiro da morte
o estupor coisa ruim satanás

caboclo do sertão
criado no leite de cabra
matava feito a peste cabeluda

inventou de fumar
orégano cânhamo prensado
para dançar a dança da chuva

ai meu amigo
o hômi ficou doidão
no juízo acendeu várias centelhas

viu borboletas
fingindo serem flores
num beiral de uma calçada

cuspiu rosas vermelhas
com espinhos
na cara de Barrabás

viu o sol na curvatura
voando
no espinhaço de uma vaca

correu vaguejada
laçou boi
no lombo de um cavalo marinho

em putaria com medusas
nas margens do velho chico
foi visto nuzinho

colou estrelas
de plástico
na asa de seu penico

estrelas que capturou
das vezes que foi ao espaço
em cima de um trator

depois daquele dia
nunca mais o hômi
prestou

dizem que deixou
até de ser matador
hoje não mata nem galinha...

foi só fumar
o orégano cor de rosa
que o capiroto amansou

credo, cruz, ave maria!



Calaça. Ilustração: detalhe do cartaz de Deus e o Diabo Na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

IPSO COLORE

















O próximo instante é incolor

poderá ser colorido

ou ficar mesmo sem cor


Lanoia. Ilustração: Homem e Natureza, de João Werner.

sábado, 23 de outubro de 2010

EU VOU PRO CÉU















Eu vou pro céu.
Há quem não acredite.
Mas eu vou.
No céu, bilhões de estrelas me esperam para confraternizar.
Brilharemos juntas na eternidade.
Eu vou pro céu porque o inferno não me agrada.
Muito calor, muita gente, muito pisa-pisa.
Oras! Se eu gostasse do inferno, pegaria ônibus lotado.
Gosto é de silêncio, de paz, passarinhos assoviando, cores frias...
Vou ao culto, pago o dízimo todo domingo sem falta.
Imagino que seja como pagar a mensalidade da casa própria.
Não tenho dívidas com ninguém.
Mas há quem não acredite que eu vá pro céu.
Até parece...


Vanessa Lobo

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A SOMBRA























Ontem, atravessei a rua
E a minha sombra ficou do outro lado.
(Des)assombrado olhei para ela
E ela zombava de mim.
Estava morrendo de rir.
Dava gargalhadas em escárnio
À minha condição humana.
Ria por eu ser humano,
E feliz se sentia por ser apenas uma sombra.

Senti a felicidade sua de ser sombra,
E não ter que me acompanhar.

Virou-se e andou dois passos.
Eu a segui.
Olhou-me de soslaio e tornou a andar rapidamente.
Apressei o passo.

A sombra caiu...
Gargalheando arcadas chaplinianas.

Depois levantou-se e disse-me:
Agora és tu minha sombra!


Tiago Oliveira de Sousa.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

A MENINA QUE VIVE EM MIM



















.

A menina que vive em mim
Sonha acordada
Os contos de fadas
Não se preocupa com as horas
Nem com partidas
Ou chegadas

A menina que vive em mim
Desenha estrelas
De cinco pontas
Em cadernos de brochuras
Não se atem a medos
Regras ou frescuras.
Não pensa nos anos
não tá nem aí
pro tempo

A menina que vive em mim
Vive os sonhos
Não lamenta os enganos
E se veste de mulher
De vez em quando
No espelho da realidade
Mas ela insiste a viver em mim
Pra dos sonhos
Não sentir saudade.


Sirlei L. Passolongo

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

DESDE QUE ROSA FOI EMBORA















Eu não tinha percebido
O sorriso melancólico das violetas
Lembra o meu

Fiquei assim Desde que Rosa se foi
Daí perdi o céu
O endereço do inferno
A vaga na garagem

Escrevo versos dissimulados
Sou falso com as rimas
Nego o amor
Que qualquer um vê estampado nas minhas janelas

Eu não tinha percebido
A ironia das serpentes
Faz meu olhar ficar cinza, meio opaco

Já não vislumbro o azul
Nem o lilás alegre do pôr do sol
Contemplo rugas na lua
E estrias na calda de algumas estrelas

Vejo defeito em tudo
Fiquei assim desde que Rosa foi embora.


Radyr Gonçalves

domingo, 10 de outubro de 2010

CARTA 3


















Abri minha barriga como a um livro
E desfolhei-me lentamente
Como que gelatina (framboesa).
Vi-me espalhado pelo chão da cozinha
Viscoso como no parto do antílope.
Escrevi meu epitáfio
Com o intestino estrebuchando no chão.


Flávio Mello. Ilustração: O Labirinto - Salvador Dali.