quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

PÓ E CINZAS
















Pó e cinzas

Participarei do vento

Que vai ao mar

Na praia da Sununga

Quando voltar

À dimensão do nunca.


Antes de chegar

Voarei com a gaivota

Sobre ondas do mar

Repousarei na tartaruga

Que dorme na ilhota.


Na boca de um golfinho

Entenderei palavras

Que tentam aconselhar o homem,

Mas ele não escuta,

Ou apenas faz de conta.


Quase no fim da viagem

Serei grão do castelo de areia

Onde dorme a princesa

Lembrança que se apaga

Do meu sonho de menino.


Antônio Carlos Rocha

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

OGUNIÊ, AGÁ!
















tenho alguns cabelos e pensamentos africanos
que me foram colocados na época de menino:

- coisa de cosme e damião...

eu andava pelas ruas com uma sacola de papel
a pegar tudo quera bala e pirulito e diagrama
e novidade de vidro e céu, de terra e cor.

mas também havia aquele lance dos tambores,
dos pés velozes,
dos colares carmins e coralíneos,

e aquele esquema de fechar corpos
e da insurgência da mulher entidade
que batia de mão fechada...

minha avó de branco,
meu avô de azul,
eu atabaque e meu primo Siê,

Siê de pai e mãe,
a cantar inocente sem saber na vida
que tudo que é espírito carnavalesca!

nesse finalzinho de ano,
do ano em que perdi minha avó,
me resta imaginar São Jorge
derribado do cavalo
a gritar do meio da favela
em que nasci lá nos setenta:

- oguniê, Agá minino! oguniê!


Anderson H

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O PALHAÇO DE VIDRO: Um comentário sobre Flávio Mello.























Flávio Mello é qualquer coisa entre Capinan e Torquato Neto. Se é que é possível conciliar estas duas personalidades em alguém... De fato, Capinan faz com que Flávio não se mate. Se Flávio fosse apenas Torquato, não nasceria, seria abortado!... A escrita de Flávio Mello é um vômito do codiano. Ela flui com a própria imprevisibilidade do imediato. Esta forma de narrar está bem em cotexto com os dias de hoje. Se observarmos a sequência de imagens de um filme brasileiro atual, veremos que é assim: cortes abruptos, tudo é mostrado em sequências fragmentadas... porém lógicas! É a lógica interior.
A literatura, bem antes do cinema, adotou essa forma de narrar faz tempo. Na época de Proust, isso era chamado de "tempo psicólogico". Flávio, no entanto, não expressa apenas tempo, mas uma forma de ser e sentir. Um sentir que está em sintonia com os dias de hoje, com 1 milhão de outros Flávios e Flávias existentes por ai e até dentro de nós. É como se você interpretasse alguma peça do Asdrubal apenas para si mesmo, tendo você como único ator... e não querendo ser engraçado. Se você é um palhaço, não o é por opção, mas por maldição!... A maldição de todo ser moderno: viver sobre a corda banba do picadeiro abaixo dos edifícios... com os carros correndo como crocodilos no rio grafite de asfalto, onde será arrastada a pasta do teu corpo quando ele cair... para o delírio e aplauso da platéia!...
Talvez seja uma forma mais dramática, mais "trash metal" , ou "mangue beat" de Luís Fernando Veríssimo. O fato é que Flávio Mello nos reporta ao imediato, ao agora, como se você estivesse vendo a cena se movimentar de dentro dele: o narrador. O narrador "é" você! Pois você vive o cotidiano que ele vive. Ache você medíocre, ou não. Sei que é chato se sentir um palhaço de vidro: ridículo, engraçado e que se quebrará daqui pra ali... (e isso é que fará todo mundo rir!). Mas isto é o cotidiano. Uma peça em palco pobre, onde entramos desde o dia em que nascemos. E que talvez, quando morrermos... percebamos que foi apenas um sonho. Um sonho tolo que julgamos ser real.


Marcelo Farias. Ilustração: Palhaço, de Michel Mendes.

sábado, 28 de novembro de 2009

QUEDA (LIVRE)























Subiu a escada
Desceu a escada

Como sempre, tudo muito normal

Subiu a escada
Desceu a escada

Como sempre, tudo muito comum

Subiu a escada
Desceu a escada

Como sempre, tudo muito trivial

Subiu a escada
Caiu da escada

E nunca mais subiu a lugar nenhum

Eder Ferreira

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Escolha




Em tudo crio
um lânguido olhar teu - infame sacrifício
À enterrar-me aos pés de ilusões perfeitas.

Assim como o sol arde em claridade;
Assim, a claridade segue apagando meus ideais.


Do desencanto,
espero nascer a nostalgia (engano)
desde os teus pés a caminhar sobre o meu chão
até o meu rosto que encontra-se entre os dois...

Quero queimar-me!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

QUANDO A VIDA ERA MENINA

















Um pedacinho de arco-íris
Nuvens que pareciam
Flocos de algodão
Por trás dos olhos que riam... O sol
Com fina neblina
Embaraçando a retina.
A vida era uma menina...
O vento, as flores, os matagais
Era abrir as cortinas
E olhar um pouco mais...


Sirlei L. Passolongo

domingo, 1 de novembro de 2009

PENSANDO O TEMPO























Gostaria que o tempo
fosse como uma corda.
Não como uma cobra
de veneno sutil e lento.


José Ferreira

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O QUADRO INACABADO






















Aquele quadro que está ali na parede
É minha obra inacabada
Percebam que não tem espaço vazio
Os prados, os montes, a casinha da colina
As crianças, o lobo, o rio com peixinhos coloridos
Preenchem cada vão da minha arte inacabada

Percebam, eu estou lá
Em algum lugar tentando explodir
Uma pedra
Tentando escrever algo de domingo
Rabiscando agendas
Chorando palavras jogadas
Com tinta sangue

Aquele quadro que está ali na parede
Tem muito de mim
Percebam que as pessoas não param
E o vento inquieto faz cócega nas folhas das palmeiras
Percebam a inquietação dos coelhinhos
E a irritação dos potros

Percebam, eu estou lá
Sentado nalgum lugar
Entre as prisões que eu mesmo pintei
Tem tudo de mim neste quadro
Percebam
Os sentimentos, as emoções, esta ânsia de amar
Percebam
Eu estou lá, em algum lugar tentando explodir uma pedra.


Radyr. Ilustração: quadro sem título de Augustin de Lassus.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

GUARD' ALMA

















a Árvore, pobre árvore,
vizinha antiga enraizada no chão do bairro italiano,
guarda ampla visão de meus passos plact plact:

quatro mil
duzentos
e poucos.

penso que a Árvore, pobre árvore,
pelo amor que me tem de graça,
sabe mais das coisas da terra
que das coisas próprias das árvores:

então é seca...

sem pássaros que lhe defequem nos pés desnudos...

Árvore, pobre árvore,
por se importar mais com os buracos,

nascituros
esfomeados
que hão de comer-me
os tombos,

não observa a passagem do tempo.

é como as pombas sonorolentas
que espreitam os suicidas
do parapeito das janelas.

- toda-via, toda-via, não me iludo!
quando desabo num vão de estrada
sei que se ri das raízes à copa!
Anderson H

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

SONHOS























As mãos cansadas tateiam nos lençóis

Um pouco de voz da noite

As nuvens que passam sob meus olhos fechados

Observam o rio que toca o calcanhar dos meus sonhos

A luz da fresta do ontem

Descobre o rosto escondido pelo nó

Enquanto o tempo, descosturando os meus cabelos

Dança com meu peito

Embalado pelo sopro gentil de uma janela rara.


Flávio Umaguma

sábado, 10 de outubro de 2009

HOJE VISITEI MÁRIO DE ANDRADE



















Hoje visitei a casa do Mario de Andrade. Foi por acaso _dizem que nada é por acaso! _Mas estava na Barra Funda comendo um pedaço de abacaxi _desses mesmo que a gente compra numa banquinha de frutas na esquina _depois de enfrentar uma fila na Junta Comercial e ter "discutido" com o atendente que queria se livrar de todos em um minuto como que para demonstar sua eficiência. O cara não ouvia ninguém e na minha vez prometi a ele que se não me passasse todas as informações ia dar um beijo na boca dele na frente de todo mundo. Nunca vi alguém corar tão rápido e a fila inteira riu. De fato as informações estavam erradas e quase paguei inutilmente uma guia que não serviria para o fim que eu precisava. Comia o abacaxi e computava meu prejuízo do dia, guia: quinze reais, abacaxi: um real e o estacionamento: oito reais, tudo por uma exigência da Receita Federal e acabei ficando com um protocolo pra voltar em cinco dias. Eu falava com o Luiz Filho no msn pelo celular e dizia que as ruas da Barra Funda eram esquisitas e ele dizia que era questão de acostumar...uma vez eu disse pro Schawartz que não tinha nada na Praça Roosevelt... ele até twuintou minha frase... disse que rendeu muitas gargalhadas. O Schawartz é mais um que não acredita que nada é por acaso, pois foi por causa do absurdo que eu disse que acabei lá, na Praça Roosevelt, rodando em seus bares com a Rita Medusa, o José, o Mirisola, o Bactéria, Bortolotto, quer dizer o Bortolotto estava presente, só presente... E hoje, foi justamente quando eu praguejava as ruas da Barra Funda, que dei de cara com a Casa do Mario de Andrade. Lembrei do Muryel e por causa dele fotografei. Espero que ele goste das fotos.

"Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez."

Mario de Andrade


Ivone fs. Ilustração: placa indicando a casa de Mário de Andrade, em São Paulo.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

OLHOS DE RESSACA















Tua imagem
é céu nublado

blues,
noir,
a mente no ar...
nublada,
azul.

Teu olhar de inverno:
olhos de ressaca
-Capitu francesa-
ninfete


Marcelo Farias. Ilustração: close no olhar de minha ex-aluna Bruna Almeida Alves (foto retirada de seu orkut).

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

SEM TÍTULO NENHUM (e isso não é título?)















*
tecendo um colar
de contas transparentes
eu ouvia a chuva
me dar conselhos

a vida _dizia ela_
são as pedras que você atira.
e não vá por ali,
não entre no lamaçal.

a velha senhora
me ensinava tudo
pacientemente

e então eu adormecia
escutando seus miúdos passinhos
_para lá e para cá_
no meu telhado de vidro.


Allanna

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Com A Saliva No Sangue.


Dizem que brevemente eu morrerei
Na leve tortura de uma lembrança sua;
Destroçando a carne da esperança,
Afogando-a em loucuras diversas,
E respirando a água das chuvas tortas
No cintilar de uma íris perversa.

E lá - onde aqui me encontro -
Mesmo não dizendo quase nada
(Nem metade da lama em si)
Hei de voltar;
Com o cachecol no pescoço
E nas mãos, o esboço
Dos poemas (blasfêmias!)
Que escrevo em teu nome.
Pois é tudo pra ti.

Não te disse nada
Desde a cama em que durmo
Até a maré e a enxurrada
Onde a chuva, sozinha ameaça
Lavar-me inteira
Tirando o teu perfume de mim
Rasgando o teu nome daqui
Com suas quatro angustiosas letras.

Nos fins de minhas tardes, vejo-te
Parada ao vão da porta
Na caneta, meus melancólicos dedos
Descrevem o reflexo torrente de tua imagem embaçada
Tortas linhas,
Nas absortas gotas de orvalho em sangue que percorrem teu corpo
E que nunca te agradaram.

Ainda tenho paixão pelos teus cabelos!
Ouço no escuro, meus dedos a percorrê-los
No enlace do abraço nosso
Onde o contraste do meu sorriso
É o redemoinho de teu feitiço.

Ah! Se não te esqueço
É por preguiça - não medo -
De perder-me de teus olhos
De encontrar-me reluzente
No chão das rentes flores,
Que eu mesma desperdicei.

Estás calada, de boca fechada;
E, ainda assim,
Afundas tua língua negra em mim
Ao me ameaçar no cumprimento da palavra.

Há em mim a loucura!
Existe aqui, o fogo ardente!
Tenho tua voz emitida em meu cérebro frouxo,
No lúcido amor do copo
Que ouso beber todas as noites,
Ao brindar o meu horror!

Meu momento particular,
Já consegue ter duas cores:
Azul - me lembrando o teu céu,
Movimentando meu pescoço além da alma;
Vermelho - da chuva morta,
E o mar cinzento que tu navegas.

À noite eu sugo
Nos dentes negros de sabor agridoce
No manto de algum mosquito morto (catástrofe)
O sabor de suas entranhas.

Desejo que tu sintas desgosto,
Por ter um dia gostado de mim.

Existem úteros em seus olhos
Gerando calúnias ao amor - já morto
E os olhares rancorosos,
São os admiradores dos outros que rodeiam teu corpo.

Ah, se me ouço declamando
Os cadernos, ou choros...
No sentir do abandono,
Devoraria-me!
Ou as palavras que escrevo,
Retornariam ao purgatório
Onde as almas vizinhas
Repousam como hóspedes.

Tu te afastas;
Imitando com a boca o som da porta.
Abalas a ternura,
E sacrificas o porco na tua calúnia
Onde teu café é veneno.

Já me é possível ver reflexos na madeira!
E alargando meus ouvidos,
No corredor desabitado
O lastimável estado em que me encontro
É pura farsa! - adiante -.

As rimas duras noite adentro,
São minhas palavras ditas ao vento (ecoando sozinhas).

E só no ato
Ao reencontrar minha língua perdida na tua
Emergindo em tua garganta - promessa minha -,
Lembro-me:
Sou louca, e esquecida da realidade!
E tu, que não amas de verdade,
Diverte-se ao conter meu nome
Em tua rouca voz.

Tuas dores, são o sal que deslocam meus pensamentos;
E teus medos, são a doçura do horizonte de minha pele.

E não há algo tão lindo a ser observado no escuro:
Tu - ali - a me possuir - assim.

E aqui - tua morada -
Está guardada a tua lembrança.
No semblante do ardor cego,
E no verniz seco de meus pulmões (o suspiro ao dizer teu nome).

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

MINHA LÍNGUA


















Minha lingua tarada
Deflora palavras
As revira e apalpa
Até perderem a fala

Minha língua insana
Desregrada, encanta
Mesmo em trapos de sílaba
Arde em fortes chamas

Minha língua
Sempre volta
Desonrada
E louca

Nunca morre a míngua
Sem palavras na boca.


Alana

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Traços à Caiero


de tudo que já julgaram inútil
contesto apenas as demências
pois elas fazem sentido
poucos vêem com olhos lúcidos de hora integral

pensar é enlouquecer devagar
a cada segundo enlouquecer
de raiva e ciúme enlouquecer
enlouquecer até de não pensar

e de pensar
e ficar louco
devagar
pouco a pouco
aprendi a não procurar respostas
aceitando os exageros de minha futilidade
e dor

quando penso esqueço das horas saltadas
fora da sanidade
em um mundo de irreflexão e tolices
e volvo insano outra vez
de remorso e alivio bruto
devagar e bruto
louco
bruto

eis a fórmula d'alquimista!
pensar!
prefiro estar doente
a observar em eterno...
e não fazer juízo de minhas impressões

terça-feira, 14 de julho de 2009

O decorrer dos dias.


I

Quando a noite acorda, já é dia;
A estrela é o próprio céu trincado
E os olhares permanecem à deriva;
Das desovas, ou amores desolados.

No escuro nasceram os meus corvos;
Famintos, eles flutuam sobre os ares.
E se, porém, as tais estrelas caíssem,
Um "céu de penas" derreteria sobre os mares.

Quando as ondas lá nos rios conseguem ser
Tão mais mares do que pode se conter
Eis que o sal se acidula com a chuva
E a voz do continente se acentua:
"Do seu contrário e do desejo conseguistes
Faces lentas e quedas d'agua tristes!
Tornar a vir em sua meia volta;
Não é amor que lá na fonte se encontra!"


II

Quando o dia dorme, a noite sente.
O rastro vago e moribundo cala os ares;
E no cair da deslumbrante tarde quente,
As sombras gélidas ainda vagam pelos vales.

Águia - tuas belas asas!
Ao revoar de suas penas - saudosa voz!
Perdeste o ar - onde se escuta!
Em minha taça, tua inocência
A ser brindada com cicuta! - ou resistência!

E lá no mar - nosso calvário;
No aspirar das coisas mortas - o sal;
A onda brilha - o sepulcro!
A serrania despenca aos estilhaços
E os abraços na modéstia da insônia,
Afogam pedras nas velhas preces destes lagos:
"E cá, onde o mármore é líquido;
No brilho lúcido de nossa pureza,
O aroma pútrido de sua alma
Retornará sobre sua cabeça!"


III

No desejar flácido,
Dos bons tempos únicos...!

Por natureza - noite e dia!
Por necessidade - quente ou fria;
Mantive almas - especiarias;
Demasiado sangue a ser jorrado,
Ao puro amargor das vinhas!

Óh, adormecer traidor!
Na hora de se expor - por si basta;
Levas o delírio!
Ou a embriaguez da morte sangrenta,
Que no esfriar dos dedos flutua,
Carregará a sombra nua - sobre meus ombros.


Escrito em 22/06/2009.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

PONDERAÇÕES


















A vida do filho ainda segurava seus pés na escada
Na corda descansava o peso insuportável de sua desgraça
E não havia amor que desfizesse o nó na garganta. .

André Ulle. Ilustração: Joel Barcellos em cena de Jardim de Guerra (1970), de Neville D'Almeida.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

ALICIANDO


















Num contorno qualquer
No país das maravilhas
Os ruídos serenos vazaram em azul
Enquanto meus nervos vermelhos
Vagavam, vibrantes, pelas veias tortas

Nas brasas de cigarros vagabundos
Queimei o jardim de naipe copas
E na ferrugem da lata de leite
Vingou a flor roxa do desejo

Sem guilhotina e nada no avesso
Fios vermelhos de sentimentos
Queimaram totalmente o silêncio
E a água da chuva no espelho
Era o reverso do medo...


Patrícia Gomes Barbosa.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

HUMANO



















Pode haver feiura no teor da fala
na miopia e estreiteza de pensamentos
e até mesmo na boca que cala.

Quando presente, torna-me o dia
falsário e ladrão.

Não vem por acidente,
me ludibria,
se esconde no armário,
mas faz-me descrente e pagão.

Pecado sem castigo
sem punição,
é parte da vida, é dela um bocado,
sacia e não nutre,
maldita comida.

Eunucos, corcundas,
defeituosos,
nós, homens, somos sombras,
fracos, leprosos.

Nos deram uma alma
mas não ensinaram
que se não é sagrada
não serve pra nada.


Bianca Siotti. Ilustração: desenho anatômico de Leonardo Da Vinci mostrano as proporções do corpo humano.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

O OVO DO MUNDO


















a gema do sol
de Dali
rompe a casca
deita se macia
nas águas do rio

as nuvens alaranjaram se
e raios de luz
abrem os caminhos

a grande casca branca
rompida ao meio
são portais
da beleza
do inferno na terra

o belo
era tão belo
que virou pesadelo


Calaça. Ilustração: Gema do Sol - Salvador Dali.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

MEDIDAS DO NOCAUTE






















Estátuas de sal crucificadas
Meu corrimão entardece
Tenho quilos de desvantagem na tua frente
Empobreço os olhares
Um beijo asséptico me condena
Tenho horrores nobres na tua frente
Encolho passáros venenosos
Um campo desnutrido me arreganha os dentes
Frente e verso de deslocamentos
Não tenho nudez
Esferas líquidas me vestem
Deduz-se que estou morta e procurada
Envolva-se com a minha vaidade
Artilharia desvirtuada de cínicos
O ritmo fervilhando
Os metros de inutilidade
Procuram-te.


Rita Medusa. Ilustração: Sempre Há Um Prisma - Rita Medusa.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

DESARMAMENTO























Quando ainda era sinal de luta
e revirei coisas e saí em chamas
e procurava o labirinto infinito
onde as unhas se quebravam

o quarto escuro, a teimosia
ansiava a desordem, que fosse
a imprevisão do previsível
o triunfo de ver novo, insistia

ora, se durmo e acordo
e hoje é outono, o sol não queima,
mas o vulcão me habita

talvez o segredo, em que não creio.
seja o inexplicável, o grande desconhecido
a verdade, que intocável permanece

o que me faz seguir...


Ivone FS. Ilustração: Le Reveil Posters - Christian Coigny

terça-feira, 26 de maio de 2009

OSCULUM OBSCENO























num perfeito meia nove
me pressiona contra o ventre
como louca ela se move
até que a língua entre.

ela geme, urra, chora
e encara a minha vara,
que bom seria se agora
ela peidasse em minha cara.


Artur Farrapo

segunda-feira, 18 de maio de 2009

FULCRO



















Minha vontade: um desgaste
sem fulcro
Estou a fenecer,
estou sentado no pátio
deste império natimorto.

Perdi meu nome
no cancro espalhado
dos teus olhos. Agora sou
um lazarento infeccionado
pela lepra da tua boca.

Estou de partida, sim, estou
de partida.
Na partida me esbarro no
caroço de pus prestes a estourar
no teu pútrido.

Já não me escondo nas faces
que tenho. Sou quando estou
numa delas.

Ao me ver com a face
fria e pálida, lembres
que sou somente mais um.

Alguém passará por meu
cadáver e comentará
até o que não fui.


Vagner Castro

segunda-feira, 11 de maio de 2009

"Obra de Arte"



Você sabe desenhar um coração? Então desenha com um giz de cera aqui no meu peito, pode ser? Com giz de cera, pois me queimei feito uma vela esse ano, e acho que essa cor escarlate combinaria comigo... O quê? Giz de cera não “pega” na pele? Tem que pegar! RAM! Eu já fiz coisas mais difíceis, e olha que sou humana demais! Anda logo, me risca logo! (Não interprete de modo errôneo – não me risque da sua vida!) Eu vou fingir que vai sangrar. Perto do coração sempre sangra – não sangra? Faz um tempo que não vejo sangue, mas eu o sinto escorrer, sabe? Aperta mais!!! Não estou sentindo fincar na pele... Como assim não vai dar certo? Me dá isso aqui! Eu mesma desenho.


(...)


Ficou bom? Bem, eu nunca desenhei muito bem... Mas você gostou, não gostou? Ah, não ligue, eu sangro mesmo. E sim, o meu sangue é dessa cor. Deve ser pela demora, ou talvez ele esteja bem curtido aqui dentro. É quase um “tempero”, sabe? Eu deixo o meu sangue em conserva pra... O quê? Não! Hahahaha! Nunca desenhei um coração por ninguém. Me desculpe mesmo por você não ter gostado. Quer que eu desenhe outra coisa? Uma montanha...Ou até outro mundo pra você...! Não! No meu peito não cabe um mundo todo, mal coube esse coração mal desenhado... Você consegue enxergar? Não, não é um urso – apesar de ser tão grande quanto. O que você acha de eu tentar desenhar um em você também? Ah, tudo bem. Entendo... É realmente necessário estar preparado pra isso, não é? Ah, tudo bem. Nos vemos mais tarde então? Que pena... Certo. Até mais, então...


- E agora? Como faço pra apagar?



(Escrito em meados do ano passado.)

sexta-feira, 8 de maio de 2009

AM(AR)























É difícil amar,
pois amar é oceano:
pairando
para lá e para cá.
Se amar fosse sólido,
seria pedra de gelo.
Melhor então ser vapor
e pairar pelo infinito.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

COMO EU QUERIA VIRAR NUVEM...























e sou tão absurda
quando jogo comigo mesma!

mas inventar alguma coisa
daria uma tonalidade audaz
nesse quadro inanimado:

o branco incendeia
o breu da noite atormentada
a cada linha delineia:

anjos de asas e armaduras
adornam vielas com casinhas acesas
as janelas, os segredos

(que nem são segredos,
mas não tenho acesso)

liláses, vermelhos, arredores
"Rosa-e-Azul"

montanhas, pincéis, crianças, nus
Renoir, Van Gogh, Monet, Degas



Ivone FS. Ilustração: Madame Monet e seu filho - Claude Monet.

terça-feira, 5 de maio de 2009

CHUVA QUE ME BANHA SECA















A cova que me viu passar cantando
Foi cúmplice do mal que me assolava
Na porta que chorava quando entrava
Soluços de degredo quando em quando.

A pá que me enterrou foi posta em riste
Cansada de beber da mesma terra
Da morte que comigo - só - se enterra
Num solo sem amor na face triste,

A chuva que me banha sangra seca
E escorre pelo ralo da indolência
Partida de uma face pobre e seca
Que ri em pleno acesso de demência.

Parti do próprio parto agora pobre
Pra um mundo sem louvor que desconheço
Prefiro estar na peste onde amanheço
A ver o ser hipócrita ser nobre.



dos Anjos. Ilustração: múmia egípicia do período pré-dinástico.

sábado, 2 de maio de 2009

BILLIE, ELLA OU ELES






















Escuto vozes. Mas não essas do inconsciente atormentado
Mas as que a pouco sopraste desses teus olhos calados
Pra meus ouvidos falantes e coração quebrantado
De almas itinerantes em fás que fazes de conta que teem dó por si ao menos.

Faz de conta que as mentiras de outros tempos vicejaram
Em amores e cabanas suficientes... pro meu ar de "ainda não basta!"
E teu rosto de rei louco e concentrado no projeto de amar-me até o limite
Do que nunca acreditaste... mas fingiste - com talento em teu cesto de disfarces

Dorme em cama a meu alcance... pé fujão (já tá gelado!)
Numa imagem de menino de cabelos desconfiados
Recoberto de tecidos de ternuras tão antigas
Por minhas mãos de longos dedos... braço magro... espichado.

Na tv cena de beijos, talvez tão tecnizados que nenhuma língua ousada
Me convenca da verdade... dessas que hoje às dez e vinte
Te acordaram provocantes, intrusivas, debochadas de... teu sono sempre fácil
Contundentes de desejo em falicidades solares... corpo mole... mas nem tanto.

Penso então em convidar-te pra dançar no chão da sala
Em que gatos quase humanos tocam tuba e Billie, ou Ella,
Ou você, ou eu, ou eles... das gavetas das memórias...
Em que nossas ensaiadas delicadezas vulgares beatificam meu corpo.

Fluídos bentos de vontade.


Cado

quarta-feira, 29 de abril de 2009

(Capítulo I) Além-Mundo


Este excerto faz parte do livro 'Mensageiro do Apocalipse' da série 'Guardião do Universo', que está sendo feita por mim, Lucas Augustus e estou publicando o primeiro capítulo como um aperitivo da obra. Comentem se gostarem, até.
---
Além-Mundo

Um relâmpago cintila dentro de seu tempo e eu acredito que alguém possa guardar as memórias do mundo.

Era uma vez, e tudo começou com um bater de asas. Ele veio assim, abraçando o mundo em uma queda livre, como se fosse uma estrela cadente rasgando o tempo. Seu corpo colidiu com o chão num baque surdo fazendo os ossos de seu corpo estremecerem. O lençol de água eclodiu salpicando os arredores.

O jovem e pequeno Thomas se levantou olhando o poço em que estava. Sua respiração ecoava pesadamente enquanto observava o infinito a sua frente. Um mundo subterrâneo ao meio de cristais e rochas que se fundiam num universo rochoso.

Um desgraçado — eu devo dizer. Um pequeno e desafortunado patife. Que olhava com aqueles malditos olhos prateados que continham um brilho quase sobrenatural. Andando de um jeito curioso, com passos desengonçados que cobriam o caminho. Ele fitava de queixo caído as figuras rupestres que tomavam espaço no teto, estavam gravadas com sulcos na rocha tosca. A luz vinha de tochas firmadas na parede, fazendo — com o crepitar do fogo — as sombras dançarem de forma bruxuleante ao som dos pingos enormes das estalactites.

Atravessando uma fissura ele continuou a exploração. Em que diabo de lugar eu estou...? Pensou ele. Seu pensamento soou alto pelo lugar, como se estivesse falado em voz alta, mas ele nem sequer havia aberto a boca! Assustado, as únicas coisas que tomaram o palco da sua mente foram seus sentimentos. Estava confuso e quanto mais ele avançava, mais o terreno se tornava difícil. Uma neblina se formou em seu caminho, deixando turvo não só o ambiente, mas a vontade do pequenino.

Um fio de suor deslizou por sua testa. Deve ser uma caverna, devido o tamanho dessa extensão... Mais uma vez sua voz reverberou ecoando pela caverna abaixo. Resolveu parar de pensar. Deixando sua atenção se preocupar com o mormaço que se estendia abafando o lugar, ele tentou não se importar, sem sucesso, pois aquilo era uma grande mentira até pra si mesmo. Estava se esgotando, ia arrastando os pés quando seu pé afundou e a água o atolou até a cintura.

Notou, então, que um açude se formava a sua frente. Como mágica, a neblina se dissipou dando lugar a um grande rio negro que se perdia no horizonte. Ótimo pensou alto sem se importar com o eco Ando léguas para dar nisso... , ele já ia voltar emburrado quando viu no horizonte um barco vir sonsamente pela superfície sem maré do lugar. O pequeno barco vinha diminuindo a distância vencendo o rio negro. Apertando os olhos, ele pode ver um ser oculto num manto remar lentamente com seu leme.

O barqueiro o olhou de cima a baixo. Desde os palitos que eram as pernas de Thomas até o cabelo branco e desgrenhado da criança. —Uma cor bastante normal para crianças mestiças. — Desprezou com um nojo aparente. As roupas surradas do pequenino, que realmente já dotavam de anos de remendos, tornando-o aparentemente sujo... E antes de qualquer protesto de Thomas pelo ultraje, o barqueiro estendeu a palma da mão, mas abaixou-a assim que viu a cara indagadora do garoto.

Ele tirou o capuz, um rosto cadavérico com olhos fundos se destacou sobre as inúmeras cicatrizes de seu rosto castigado. Cabelos ralos lhe desciam até o ombro de forma encaracolada. – Dinheiro, criança. — Disse ele. — Já não é fácil navegar no inferno e ainda por cima não paga as duas moedas de praxe do Caronte? — Finalizou ele em tom severo.

Constrangido, Thomas levou a mão ao bolso e estendeu a mão para o barqueiro do inferno. O velho franziu o cenho. — Só uma...? — O garoto deu de ombros. O velho suspirou fundo e disse — Certo. — E o puxou ainda relutante para a embarcação. Empurrou com um chute a pedra do ancoradouro para dar impulso ao barco (que deslizou suave na maresia).

Depois de um tempo navegando, a única distração de Thomas foi ficar olhando a superfície líquida do rio, que, a não ser pelas ondulações que o barco produzia, parecia mais um diamante negro derretido de tão sólido e volúvel que era. Como uma camada de lençol escuro cobrindo as trevas daquele lugar.

Ele ficou reparando as profundezas, parecia que via sombras. Pois, ou seus olhos o enganavam, ou ele via vultos de mãos tentando alcançar a superfície. Isso fez com que um calafrio descesse a espinha do pequeno enquanto o velho Caronte ia com um sorriso debochado estampado no rosto.

Agora, o teto da caverna rochosa abriu para um céu impetuoso. Nuvens púrpuras — Tão vivas quanto sangue. —tomavam todo o céu que chovia pesadamente, mas não caia uma gota sequer e sim, raios que retumbavam tentando agarrar o chão.

Os trovões pareciam lamentos, gritos de agonia que só a morte poderia clamar. Thomas se encolheu num canto abraçando seus joelhos. Sua voz falhou antes de perguntar. — Onde estamos? — A resposta não veio e por isso ele insistiu —...No inferno? — Uma explosão de gargalhada encheu o ar, o velho riu tanto que teve de limpar as lágrimas dos olhos, enfim ele respondeu —...Não rio assim há muitos séculos, mas respondendo sua pergunta, não é o inferno, é muito pior que isso. — Respondeu ele remando ao lado oposto para fazer o barco inclinar na curva sinuosa.

Antes que pudesse reclamar mais, uma cidade foi vista a pelo menos um quarto de hora. Thomas podia ver que lá as nuvens eram negras, elas se moviam circularmente em torno de uma grande torre que se perdia entre as nuvens. — O que ela é? —Perguntou o pequenino.

Ele pigarreou antes de falar, e respondeu num tom que parecia ser um trocadilho pela ironia na voz — Aquela é a torre de Babel. — Disse ele rindo da própria inteligência fazendo Thomas resmungar. Dando de ombros ele continuou a observar atentamente; inclinando o pescoço a fim de ver mais. Notou alguns prédios tortos, pelo visto, todos completamente destruídos.

Nossa... Pensava ele enquanto via o terror, aquilo era o fim do mundo, o caos sem multidões mostrava completamente o fim dos tempos. Um vento — pesado e avassalador — cruzou sobre eles, Caronte impulsionou até uma encosta perto de árvores feitas de pedra e mostrou um caminho ladeado de cercas vivas. — É só até aqui que me arrisco a navegar. — Com uma pausa e um olhar apreensivo o velho se curvou numa reverência — Bem vindo, meu amo, ao seu coração.

* * *

Em mim, reside aquele que julga o sono das almas.


De dentro da noite, brilhava nas sombras um sorriso penoso. Guardando em seus olhos o caminho das almas. Ele vinha vestido de pesadelos — retalhos de sobras dos sonhos mortais. —Andando curvo em meio às tormentas.

Cruzava seus aposentos enquanto desenrolava um novelo de lã, desatando os nós que mantinham os laços humanos presos a realidade. Ele driblava em sua fatalidade inteiriça com um dedal que retinia a luz delgada de uma pálida lua.

Pontos — assim como era chamado pelos ventos, por dar os pontos finais a vida das pessoas... — fitava com olhos vazios as montanhas do Vale Minor (que era onde ele morava). Ele tinha baixa estatura e tudo em seu aspecto convergia na mais pura depressão.

E pelo que sei, ele é um maldito Moiro. Sim é isso que é... Se não me engano. Um ser que anda acima da corda do tempo com o ofício de cortar os fios de vida de uma pessoa.

Olhando sempre o caldeirão borbulhante de sentimentos que se fundiam nas cores do mundo ele podia trançar o destino daqueles que estavam prontos para a morte.

Ia mexendo com uma colher de carvalho o liquido denso, jogando mais lenha no fogo. Parecia tranqüilo, de um jeito nebuloso a esconder suas intenções em milhões de pensamentos. Vinha cantando, sibilando uma canção antiga enquanto cozinhava a morte para os tolos mortais.

Morava mal, num casebre açoitado pela estiagem. Uma pobre morada feita de madeira tosca, com grandes janelas bordadas com cortinas puídas que dançavam ao furor do vento.

Pontos varria o chão de mogno, olhava de esguelha o caldeirão. Assistindo o último fôlego de vida de um humano se estender para um beco sem saída. Isso fez com que ele corresse para seu tear e puxasse um fio prata que vibrava como metal, puxou a tesoura tortuosa na mesa e admirou o fio na palma de sua mão. Passando prazerosamente o dedo na lâmina por ele.

O parco tecelão, que via a milênios os fios se entrelaçarem, ainda se fascinava em como todos os fios estavam inevitavelmente interligados, e como um simples ato, por minucioso que fosse, movesse o mundo. Como se as vidas ‘vestissem’ a história como um todo, como se a gama de sentimentos se instaurasse na humanidade, em um só corpo.

A imortalidade lhe trazia uma perspectiva distante, deixando sua personalidade mutável, como se estivesse apático, entediado. Por sempre saber em que toda grande história, por maior que fosse, levasse a mais profunda noite...

A tesoura parecia ter fome, com suas garras abertas ela reluzia ameaçadoramente seu júbilo. Movendo com um som agudo partindo do metal nas suas entranhas. O barulho da fricção do metal guinchou de forma agonizante, como se o barulho fosse de um estômago que passou dias a fio sem comer.

Ela deslizou sorrateiramente caçando sua presa. O fio, por sua vez, parecia ter vida quando se retraiu fugindo do fluxo mortal. Com um bote, o ataque foi iminente, decepando o fio que agora perdia seu brilho prateado, se tornando um velho trapo feito de lã. Com isso a tesoura, agora saciada, se deixou descansar no espaldar da cadeira.

Pontos fungou, arrastando os pés em direção ao caldeirão. Seu trabalho estava feito. A alma agora estava marcada para morrer. O destino marcava com sangue naquele exato momento o caderno do Ceifador com um nome nada peculiar, Thomas Grings.

* * *

O vento vestiu a tarde, plantou bananeira e mostrou seus soquetes azuis trançados de nuvens pro mundo inteiro ver...

O mundo dormia. E ele vinha atravessando as ondas, cortando o fôlego do tempo. Deslizava flutuando rapidamente pelo oceano. Vestindo a noite com manto comprido, daquele jeitinho despretensioso e irritante de esconder a sua glória. Era a morte — como todos o chamavam — que como diz a lenda, carrega uma foice em uma das mãos e na outra, o destino do mundo.

Naquelas horas da noite, uma chuva fina e amena caía derramada de nuvens marrons que pareciam ter um gosto agridoce. O velho cruzou a costa do farol num salto, entrando em terra firme por uma ponte castigada que rangia rudemente.

Passando pelo porto silenciosamente, ele recostou-se na muralha que protegia a cidade e antes de começar seu trabalho noturno ele curtiu a brisa que lhe afagava as maçãs do rosto. O vento despiu seu capuz, fazendo seu cabelo longo e prateado ondular no ar.

A lua o observava timidamente atrás do céu chuvoso. Tinha um rosto castigado... Com uma boca fina e rachada, e sulcos aos cantos dos lábios que lhe davam um parecer de ter uns oitenta anos. E logo acima dos lábios crispados, vinha com um nariz curvo e adunco.

A única coisa que traía sua idade era não haver marcas de rugas em sua testa, como se a preocupação nunca houvesse esculpido nele as conseqüências do tempo, parecendo que só foram talhadas as experiências em um cérebro sagaz.


Agachando-se, ele passou os dedos no solo de pedra batida e os trouxe ao olfato. Erguendo seu nariz ele inspirou os medos da noite que estavam incrustados na terra. Jogou os cabelos para trás de seu rosto dando destaque a faixa que cobria sua visão.

A morte em toda a sua justiça, era cega. E por ironia ou não, carregava um livro que naquele exato momento foi jogado ao chão de forma proposital, como se pra ele, fosse um ritual diário. O feito fez com que um cheiro se desprendesse das páginas e enchesse o ar com um aroma férreo de sangue.

Voltando ao trabalho, ele guardou o livro em suas vestes, transpassou o muro como se ele não existisse—pois afinal, ele era um espectro. —e empinando o nariz pontudo, o velho Ceifador seguiu o cheiro com seu instinto. Subindo lento e tranqüilo a trilha que se ligava ao vilarejo que, naquele horário, tinha seus pescadores que começavam a se preparavam para pescar.

Saíam antes de o sol nascer e por esse motivo, o começo do vilarejo tinha um cheiro rascante de querosene, o que significava que os primeiros lampiões se acendiam no meio da noite, como estrelas cultivando o céu.

O velho tentava apreender cada detalhe, subia a alameda sob um caminho de paralelepípedos. As janelas começavam a ser entreabertas e deixavam vazar uma luz amarela das luminárias do recinto. Os burburinhos foram vindo aos poucos, mas de todos eles, o único que chamou a atenção foi um arpejo de uma flauta doce que soava distante dali.

Indo em direção ao som, o Ceifador se pegou tamborilando o cabo da foice. Voltando a atenção ao caminho, cruzou mais casebres surrados até o fim da viela. O caminho se desfez em uma taverna (que era de onde vinha aquele mágico som ancestral).

Ele parou antes de entrar, sentindo um cheiro convidativo. Suas mãos deslizaram para o tampo de um tonel de vinho. (Coitado do lazarento, era mesmo uma pena vê-lo entristecer por não ser um mortal.)

Passando pela pesada porta de carvalho, a sua presença trouxe um fluxo anormal, que, devo dizer, era o rastro da morte. Aquilo fez com que os guizos vibrassem em sua chegada.

Com suas superstições pagãs, os boêmios se encolheram fazendo mantras, até que um se arriscou a dizer — É só o vento e nada mais... –Disse ele fazendo suas preces segurando o martelo de seu deus no peito.

Divertindo-se, o Ceifador escolheu uma mesa aos fundos e repousou sua foice no colo. Ele ouvia pacientemente o burburinho dos bêbados, o leve tom dos copos de hidromel batendo na mesa e logo, o barulho de gritos na noite.

Sorriu satisfeito. Os clientes da taverna saíram com olhos esbugalhados, viam aterrorizados um mar de tochas que ascendiam para o leste da cidade.

O barulho das garruchas batiam ritmadas ao som das trombetas. Batiam aquelas armas rústicas nos escudos, o que significava alarde geral. De fato aquela era uma busca imperial. E Justamente aquilo era tudo o que o velho esperava, uma confusão...

Ele resmungou. Levantou-se e esgueirou porta afora ao ar puro da noite. As janelas foram abertas a uma fresta segura. E pelas vazões das cortinas de retalhos, podiam ser vistos os olhos apreensivos de mulheres e crianças que buscavam sentido na confusão, dotadas de certo horror nos olhos.

Ao fim de evitar as massas, o espectro driblou por um beco. Viu ervas daninha se abraçarem com um muro de forma singela. O lamaçal surgiu discretamente de forma espessa e grudava na sola das sandálias do velho Ceifador, que com seus passos, fazia ressoar o baque do seu andar sob a luz das estrelas.

A noite nublada era formada de estrelas vivas, que ao mando da escuridão, os vaga-lumes circulavam caminho adentro substituindo os astros celestes, dando àquela situação de caos uma certa trégua.

O velho manteve uma distância segura, num silêncio solene a espera de exercer sua função. Vendo ao fim da rua, um corpo miúdo se embrenhar por um muro de piche. Manteve a apreensão no desdobrar dos acontecimentos seguintes.

A glória daquela fuga durou como a fama, que de forma iminente as trombetas soaram novamente e encheram o ar, uma flecha rasgou o céu e atravessou o ombro franzino de Thomas mutilando sua carne, ele caiu de meros três metros e, ao deslizar devido à inércia, bateu na parede lateral com o lado do corpo fazendo deslocar o osso do braço atingido.

Ele saiu deslizando no solo úmido bordado de lodo. Com a cara levemente apoiada numa poça da rua. Seu corpo gemia pesadamente com fisgadas de dor animalescas invadindo seus nervos.

Levantou-se em meio a suas gargalhadas cansadas e saiu cambaleante rua acima. Ofegava pesadamente quando passou pelo Ceifador, que o seguia sem pestanejar com seus passos largos.

O cheiro de sangue encheu o ar, descia um filete de sangue pelo punho cerrado do garoto, e na outra mão, os dedos serrilhavam encima de um livro velho e gasto.

Thomas jogou o corpo em um banco de pedra. Pôs a mão sobre a seta da flecha e gemeu penosamente quando a flecha soltou estilhaços dentro de seu ombro. Com uma força desumana ele apertou-a em seus dedos e fez força. A madeira quebrou com um estalo e ele estremeceu com a dor caindo de joelhos enquanto sua visão se fechava a sua frente.

Demorou a se recompor e ainda cambaleante, pôs-se de pé. Tremia pelo feito desumano. Terminou o trabalho puxando a parte de trás da flecha pela pena, retirando do sulco dentro de sua carne. Um gêiser de sangue brotou e ele bambeou quando viu suas forças se esvaindo. A fraqueza quase o abateu.
Mordeu a manga da blusa e puxou com os dentes rasgando a seda até o cotovelo. Passou por cima do ombro e improvisou como bandagem. Saiu aos tropeços seguindo seus instintos. O Ceifador sorria de um jeito misterioso.

Thomas ziguezagueava pela viela, sendo guiado somente pelo som dos sinos, enquanto a febre se apossava bravamente de seu ser. Sentia uma fisgada de fadiga nos rins, e como seu corpo falhava, tentava se agarrar ao ar rarefeito e fugir do breu que ameaçava o nocautear e o deixar desmaiado.

Depois de meia-hora que parecia ter se estendido como semanas, ele acumulou todas suas forças e se jogou contra a porta de carvalho da catedral daquela cidade, que abriu rangendo.

Seus olhos prata foram recheados da luz de velas dos candelabros com uma luz etérea que produzia um tom fantasmagórico. Avançava se escorando na fila de bancos, olhando as figuras oníricas bruxuleantes das estátuas e vitrais, pareciam fantasmas sendo torturados nas retratancias do inferno.

Uma chuva de cores vindas das figuras dos vitrais tingia o que restava da noite. O pequeno se jogou atrás do confessionário, se escondendo e descansando o máximo que podia. Seu corpo vacilava com uma adrenalina que o estremecia dos pés a cabeça, acompanhada com uma rajada de pensamentos que trovejavam de seus olhos. Eu nunca sairei vivo dessa... Um tremor subia por suas pernas, fazendo seu corpo amolecer.

Um grito ensaiado veio de trás do umbral da catedral. Os guardas formavam um cerco e ameaçavam adentrar. Quando viu que iriam entrar, ele se inclinou apoiando o corpo com uma das mãos, que tremeu furiosamente com o peso do corpo mutilado.

Ele duvidou de que teria força suficiente para continuar o percurso. Mas não havia mais tempo. A porta se abriu com um estrondo, e ao vibrar das garruchas, o pequeno Thomas saiu em disparada escadaria acima.

Parecia que os quadros haviam criado vida naquele momento de clímax, as figuras traziam um horror nas impressões como se estivessem a par dos acontecimentos e sofressem tanto quanto ele, mas eram os sentimentos de Thomas que montavam uma aquarela, como sua esperança, agora espatifada no chão...

Subiu se escorando no corrimão, deixando seus rastros de sangue na memória daquela igreja, que fosse ironia ou não, aquele era um local um tanto cômico pra se morrer, digno de sua mediocridade, sujaria a imagem do lugar.

Ele pulava os degraus da escadaria circular de dois em dois, olhando pela janela e vendo como a aurora ameaçava se levantar acima da boreal. Ele Chegou ao terraço e abriu a porta com um solavanco.

O garoto se escorou na parede com seus olhos girando as órbitas pela dor que se auto-aplicava com aquele esforço. Rezava como nunca, rezava mesmo sem acreditar, mas de todo, se negava a desistir.

Uma calma estranha se apoderou dele quando não encontrou outras saídas. E, junto com um vento que dançava ao seu lado com um trote espalhafatoso, ele caminhou sem medo.

O Ceifador já estava de pé olhando a cidade alerta lá de cima, achando graça das supostas exclamações quando viu o pequenino subir no parapeito — sinos.

Parecia que o céu celeste o coroava com o sol. Ele inspirou pesadamente, deixando a vida entrar. Os guardas romperam o portal do terraço e invadiram em sua forma rude. Demonstrando um ar superior estampado na face.

Apontavam suas garruchas para o pequeno que estava de costas. Mandando ordens com a intenção de fazê-lo cumprir, eles apontavam as armas mirando no corpo franzino do menino.

Thomas parecia uma ave de rapina, com um orgulho que vestia sua pompa, um corpo esguio e aprumado, e braços firmes que abraçavam ao resto de vida como podia.

Mas toda a impressão que dava era diferente do seu semblante. A confiança dos guardas desapareceu com o choque, porque além da situação, de todo o inferno que produziram, ele sorria. Seu ar agradecido os atacou em cheio, pegando-os desprevenidos. Uma calma surreal fora aliviada naquela tensão.

Até que ele se inclinou para frente. E como se o mundo desbotasse ao seu redor, tudo escureceu, o mundo parou, o tempo dormiu e tudo escureceu num só instante.

Foi então que se instaurou o breu e eles dois, Ceifador e Thomas, residiram no vazio em meio ao rasgo do tempo. Um arrepio percorreu a espinha de Thomas quando uma mão pesada e fria repousou em seu ombro. Olhou paralisado, ao seu lado. Um Ceifador que estava impassível.

O garoto se encolheu. Afinal de contas, quem é que não sentiria medo da própria morte no instante que ela desse as caras?

O velho se sentou no parapeito. Seu manto parecia cobrir o mundo agora. Em outra situação, poderia até se confundir a cena a uma simples conversa casual se não fosse o ar severo com que o velho fazia suas menções.

O Ceifador subiu as mangas, levantou o queixo e desfez o cenho apreensivo.

— As vezes sinto que a vida é pequena, cabendo na palma da minha mão... Como se a cada morte eu pudesse recolher um mundo e o pintar num quadro, deixando que sua natureza embote sua posição em seu devido lugar na moldura da história. Marcando as pessoas e deixando lacunas insubstituíveis... —Thomas escutava apreensivamente sentado num canto, abraçando suas pernas. Olhava de esguelha enquanto ele falava.

—... As vezes penso que vivo vagando nas costas do vento. Escrevendo a execução na alma das pessoas, condenando todo e qualquer sentimento... Seria então, eu, tão desumano assim por dar cabo da dor que permeia no coração dos homens? — Perguntou se direcionando ao céu.

— Seria tão injusta a existência a fim de não se dar o sentido naquilo que foi dado a todos os nossos esforços? De se perder na essência e se dissipar nas memórias... —Disse dando uma pausa retórica. — Não é por isso, caro Thomas... Existe muito mais escrito dentro das próprias palavras na qual o mundo pode repousar em paz... — Disse ele em tom suave, mesmo que sua voz fosse tão retumbante quanto um trovão.

Sua mente vagou. Ele tentava recapitular os fatos. Sua mente vagou quando entrou em seu coração no instante que o barqueiro Caronte o havia deixado.

O Ceifador foi a sua direção, ele sentia todo sentimento que transbordava no coração dos homens, ou seja, sabia tudo o que Thomas sentina naquele exato momento.

Ele se agachou na direção do pequeno fazendo seu dedo indicador tocar na testa de Thomas, extraindo os fatos que explodiram em cores na dimensão ao redor deles, como fotos em movimento que preenchiam o escuro ao fundo deles.

Flashes da queda dele ao poço se estendiam dimensão afora, via os fatos rolarem até a ida dele a cidade que deveria ser seu coração. Ele andava desolado vendo os prédios — que deveriam ser seus sonhos. — que estavam completamente destruídos...

Soube, andando pelas ruínas de seu coração, pelos memorandos jogados no meio do caminho que aquela torre, a única torre que se mantinha erguida, era na verdade o seu orgulho...

Lágrimas desciam quando ele via que nas paredes das casas debulhadas as ordens de evacuação. Os sentimentos o abandonaram, sua razão se exilou em seu subterrâneo, até mesmo sua dor foi varrida a maior apatia... Ele estava abandonado.

Havia entrado na torre, a procura de resposta ou almas vivas que pudessem fazê-lo viver, um motivo suficiente pra se agarrar ao fôlego... Mas não havia absolutamente nada a que pudesse se agarrar. Só o medo da morte que tomava controle de seu corpo enquanto ele andava pelas profundezas da torre negra.

O desespero tomou conta quando se viu ladeado de uma escuridão tão imensa quanto a morte. Viu uma luz pálida que vinha de um canhão de luz que chamou sua atenção. Caminhou até lá para ver o que havia de tão especial naquilo.

Seu peito palpitou quando viu um livro aberto de forma solitária no meio do nada. Respostas! Pensou ele quando avançava aos pulos, mas quando bateu os olhos só viu as páginas em branco.

Tentou procurar... Procurou tudo, mas só havia o vazio. —Não! — Gritou em meio aos soluços... —Não posso! Eu não quero acabar assim... — Disse se encolhendo no canto do saguão deixando sua alma rasgar...

Sentia raiva de si, sentia raiva da vida por ter feito de tudo aquele inferno. A ira tomou conta por causa de tudo aquilo, e deixando o ódio se apoderar de si, tirou o livro do estande. Quando fez isso, um alarme soou.

Alarmado, ele segurou o livro e se afastou do local e antes mesmo que pudesse fazer algo, homens segurando armas investiram brandindo suas espadas em sua direção.

Aos gritos, eles correram atrás dele ao resgate de seu item, o único item de valor que havia encontrado. Ele se agarrou a aquilo como um pedaço de vida. Pondo seus olhos no esquadrão, percebeu que aqueles eram os frutos de sua razão. Soldados da sua lógica.

No que eu me tornei?! Pensou ele enquanto fugia de si. Fugia da própria morte em sua fortaleza, fugia para dar esperança ao único feixe de luz que ele tinha. Afinal que livro seria esse para ter tantas defesas assim só para proteger um livro sem respostas?

Ele deslizou, saltando entre as escadas enquanto descia verticalmente, mas quando chegou ao térreo uma tropa fazia uma barreira impedindo sua passagem. A determinação explodia dentro dele, ele saltou para a direita distante das garras dos guardas.

É o meu coração! Pensou ele enquanto corria contra sua sorte. Se ele se conhecia o suficiente pra saber quem ele era. Usou toda sua racionalidade. Pois sabia, sabia que ele sempre se apoiava numa fuga.

É isso! Pensou ele enquanto patinava no chão liso do Hall. Sempre finjo me refugiar no senso comum. Pensou ele quando atravessou o portal a sua frente, Aonde eu sempre fui fraco!

E corria atrás da mesa real do castelo, Na minha fortaleza! E pulou contra o espelho atrás dos tronos dos reis em sua mente. Nas minhas ilusões! E saltou contra o espelho atrás da mesa de banquete. O objeto se espatifou abrindo espaço para um caminho ladrilhado em direção a vila. Um túnel que o libertava de seu destino!

Aquela era uma parede falsa, como havia imaginado. Estava salvo... Pelo menos por hora... Ele deslizou até entrar pela torre da muralha da cidade e correu pelas alamedas enquanto procurava se esconder...

As memórias se apagaram, o Ceifador se levantou e disse: — Daqui em diante — disse ele pigarreando — Eu estava observando. — Vendo que seu plano de fuga havia dado errado, Thomas se deixou desabar num choro copioso.

O Ceifador o ergueu pelo colarinho e disse — Pelo menos morra com dignidade, seu verme. — Com isso ele tentou engolir o choro e assentiu, para o alivio do velho.

O Ceifador deu suas últimas palavras — Não tema, pequenino, antes mesmo que chegue ao chão, eu te pegarei.

Antes de qualquer protesto a dimensão voltou ao normal, estava ele pronto para pular. Dessa vez, toda e qualquer confiança o havia abandonado. Só alguns metros o distanciavam do ponto final, ele abriu os braços consentindo com seu destino e, enfim, com sua desgraça.

Então ele pulou, e tudo começou ali, naquele momento, com um bater de asas. O Ceifador, prestes a desferir o golpe final, traçou o ar com sua foice; não havia mais Thomas, não havia vestígios. Só certa dúvida, de que talvez, aquela foi a primeira vez... A vez que um ser humano havia enganado a morte.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Década



Meu caminho está sobre o sol
Os meus passos estão sobre mim
Meu espelho está sobre um céu
E eu deixo meus versos no chão

Estou caminhando nas sombras
E minha alma povoa em meus rastros
É a noite, ao verter em meus olhos,
Sob as palavras que estão soltas ao léu

Minha ponte está sobre os sonhos
E eu sou um mendigo de mim...
E o destino está preso nas mãos
Sob as costas do vento, então...

Eu me perco nas garras do tempo!
Em meus caminhos deixados pra trás
No espelho quebrado em lembrança
Sob um céu ladeado de trevas...
Entre o verso, perdido em estrelas.

O caminho que se deu um nó,
E a alma se subentende,
Aos meus olhos que só sabem chover,
As palavras do dia...
Por fim...

Meu destino é canoa quebrada,
O eu não existe mais...
As passagens do tempo me enganam
E sou só mais uma criança...

Entre o verso, perdido em estrelas,
Sob as palavras que estão soltas ao léu
Eu sou o espelho quebrado,
Pelos anos que subentendem...

E eu, lembranças na ponte...

domingo, 26 de abril de 2009

RECONSTRUÇÃO


















Foi-se do olhar a luminosidade
Da palavra o toque
Do riso a promessa
Da imagem o magnetismo.

Restou a imensa saudade
A peregrinação da busca
A bruma da distância
O vácuo do desencontro.

Contudo não há escombro
Que não se possa reconstruir
Pois a vida é matéria de sonho
É ave que nos pousa no ombro.

Por que prendê-la na gaiola
Se voar com ela nos ajuda
A encontrar o que se perdeu
No balanço aleatório da terra?

Vai com ele meu afeto e amizade.


Antônio Carlos Rocha. Ilustração: Victor Joventino (Jotta), 1982-2009 _punk até os ossos!

terça-feira, 21 de abril de 2009

RESVALA DA LUZ...























a metade
que em mim se cala

é Holocausto
fogueira
cruz

dedos que estraçalham
Ivone fs
(poema dedicado a meu amigo Jotta)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

imperfeito



Se eu pudesse que fosse
federico garcia lorca
se fosse eu quem morresse
estripado enforcado a forca

se eu quisesse que fosse
o antipoeta derrubado
e se a vida fosse doce
doce e feliz fosse o fado

se a rima de camões compusesse
para raquel e sua irmã lia
mais amara se não fosse
para tão longa a noite, curto o dia

se d'agua encantada tomasse
que ao menos passasse a sede
se de repente cansado descansasse
que fosse ao vento, ao mar, à rede...

e se por fim do sonho acordasse
e descobrisse: foi pesadelo
ainda torceria para que o fosse
pois nada que é parece sê-lo

sexta-feira, 27 de março de 2009

AO MACHADO























Como quem toma vinho
pra ficar embriagada
certa que é passageiro
e o dia seguinte quase nada

Era assim que te gostava!

Feito língua no sorvete
eu te gostava. Falo!
Feito moça indecente
eu te falava. Calo!

Eu te gostava perto do normal
dentro de mim apenas,
como se fosse carnaval

Mas o sol se antecipou ao dia

Feito o êxtase de uma balada
na noite de uma segunda-feira
na alegria da madrugada
e já sofrendo pela terça-feira

Era assim que te precisava

Feito quem chora saudade
eu te precisava. Fato!
Feito fosse realidade
eu flutuava. Ato!

Eu te precisava e não era banal
tão imprescindível
feito rabanada no natal

O dia não lembrou da noite

Como quem encontra realejo
e vendedor de abacaxi
como se todo o antigo peso
fosse perfume de alecrim

Feito sabor de cicatrização
dos dias de espera e ansiedade
Feito calcinha de algodão
eu te gostava isenta de sanidade

Mas a noite lembrou de amanhecer

Eu já te gostava com escândalo

Hoje tudo que posso
É te gostar, sendo eu o sândalo



Barbara Leite