quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O HOMEM A QUEM PERTENÇO


















(leia ao som de Piaf)

ou não é pra ser gostoso


Ele me empurra Piaf goela abaixo com tanta força que sinto minha alma ser espremida. Me remexe o útero, o ovário me faz tremer..., ao me morder, ao me ferir a pele. Unhas afiadas de gato vira-latas.
Ele me sente pálida nos dedos grossos, me penetra, arteiro, artilheiro, cheirando a futebol, grama, bola e batom, me viola o corpo enquanto lavo a louça do almoço, que ele nem comeu, mas me come enquanto derrubo um prato, um copo, um garfo.
Piaf me cala, me engasga como cubos de gelo, com as pontas dos dedos.
A agulha circula os sulcos do vinil, arranha minhas ranhuras, minhas digitais, minhas entranhas. Me engasgo com sua saliva quente, melada, cheia de mim. Cheia de mim a escorrer por nossas pernas que se cruzam, animais de rua, sob a chuva, sob a lua e eu sou tão sua.
Obediente me mantenho calada.
Sinto minha vida de escrava todinha em seu olhar, capitão-do-mato que me mata e me dilacera com seu chicote quente, enorme e viril. Meu homem.
O homem a quem pertenço me reza feito terço, não perde nada do meu corpo, enquanto rezo... ele me suga, feito manga me descasca, me morde, me devora, e aquilo que lhe escorre pelos cantos da boca sou eu. Esse homem tão cheio de si, tão sem instrução, mas que faz de mim mulher, faz de mim o que quiser.


Flávio Mello http://www.escritorflaviomello.com.br

sábado, 12 de novembro de 2011

LOUCURA








Helena Ignez, musa e esposa de Rogério Esganzerla



A Márcio Santana


A loucura bateu na minha cara quando eu nasci.
Ela vinha vestida de vermelho vivo, com um xale azul.
A loucura fazia tudo ser à cores,
de plástico,
blues!...
A loucura estava em tudo, e todos,
Até nos simples casais.
Estava nas pedras, e nas portas,
Nos carros volkswagen,
e na genitália das mulheres.
A loucura fazia crescer pintos e nascer piolhos,
ou seriam pimpolhos?...
de Pintos, Ramos e Carvalhos,
ou seriam CARALHOS? CARALHO!...
O fato é a que a loucura se deu
e desceu bem antes de quando nasci.
A vi de frente e de costas.
Parecia brinquedo eletrônico,
mas falava e andava
e tinha nos olhos óculos grandes,
Ray Ban.
A loucura me disse um monte de coisas.
Veio com um papo errado, cheio de lições,
cheio de palavrões e especulações sobre o que não sei,
pois só o que sei é que ela estava bêbada,
com bafo de drogada!
A loucura é prostituta.
Disso eu sei muito bem.
Só que se veste de dama e se diz:
"Garota de Programa"!
Na sua cama não dorme ninguém,
só chupa!
e só escuta os discos de vinil velhos que ela tem.
A loucura é menina moça que fugiu de casa e brigou com os pais.
Ela não se toca que tem 40 anos!
50 anos...
60 anos!
A loucura não diz sua idade
e por caridade deixei-a dormir...
no chão!...
Foi ela quem pediu.


Marcelo Farias

domingo, 18 de setembro de 2011

PESSOAS FELIZES (ou O Retrato de Dorian Gray)























Pessoas felizes riem forçado,

para mostrar a alegria

que nunca existiu.



Pessoas felizes sorriem aberto,

para que a foto

saia bonita.



Pessoas felizes enrustem derrotas

e cantam vitórias

sem público, ou mérito.



Pessoas felizes têm filhos bonitos,

têm filhos perfeitos

para o Diabo ver.



Pessoas felizes só choram no quarto,

quando a luz se apaga

e não cega mais...


e o retrato se decompõe.



Marcelo Farias

domingo, 19 de junho de 2011

Febre-"quentum".




(A iniciação de um pré apóstolo: água, joelho em rosca e febre; química, só após as nove horas)


A creolina tratou como

dose, o emblema

salivar, que deveria ser salvo

em memória de

Rimbaud;


“Dormi aos quilos,

cabeça pesada trouxe-me

febre”


O quadrangular ato “declamar profecias” sugere desordem. Trata-se de “mastigação vascular”. Não havia sequer encordado os pulsos à maneira de Judas.

Reinou até sua janela-exclusiva-fora-da-gema-décima-sétima-chuva. A cada gotícula – nova-abertura.


“As pernas caem em pé,

porque os bíceps dos homens

estavam separados dos troncos.

Tenho que manter o sol”;


A visão tetraplégica

Minguou consigo as

mãos, chaves-verduras e competência:

“És preciso que migre Deus

para trazê-lo próprio

de volta à vida”;


Rimbaud-tá-morto.

Judas excomunga.


Travestir cães eucariontes enquanto

o mundo está ardendo,

e não culpar “melódico”

ao gerir espectral

confundes o feto com

“parir à mão-falácia”;


Disfarças

a ligeira extinção:

do que vale cortar as mãos fora,

pensando em sacrifício, carne,

tempero humano e sátira, se “Nimbus”

é oratório por dentro

de Pedro e seus leões

magistrais?


(As nove bestas voltaram às tranquilas e desenvoltas frases – acrescentei três:)


- Birra do conjunto.

- Célebre.

- Profetizar espaço.

- Mundo-acabar.

Rimbaud ingere veneno, observemos.


-||-


Cataclisma. Invenção e “Aufos”.

Os bichos desidratados por

sangues. Sem dor.

observa-se por Tekir –

ao nome da montanha – o

que vier de religiosidade

incrementa o

linguajar-de-pano:

§ That fat cigarrete §


|--|


Movimenta a boca,

frenteira rocha,

de ré-possível;

Noé desembaraça a criação

de nova década


(Por inventos, remava em sangue)


& “Yggur” prazer “movimentício”


Os dois nobres cavalheiros

já mantém seu fosco rasante

“Giacinto, quebras?

A dicção Rimbaud

processou alumínio;

Tragá-lo-ei na volta?”


A monstra cessou o que parir. Ungiu o translúcido objeto de nádega. O hummano desdém perdia o uniforme “sente-se”.


Retumbou a explicação-em-semi-latim:

“Ol mundio – língua desgraça –

jirás trendefe;

orimás desquigucero”


(O portal fechou-se. Coma, segundo os médicos. Cata-vento obsoleto. “Gíria-hydrus”)

Detonar Platão e seu raciocínio enxuto. Achar o “suicida diplomático” enfermo. Trazer coragem e meias; obstruir os pés

Pedi que me levassem. Os “Tácagros” vendiam cabeças felinas.

E o sangue continua pesado; passado tempo fora...


“Aturdi, MESTRE!

Comeste alma até chegar aqui!”

Os chifres “elpucidaram” o

apocalipse.

Denegrir o funco plasmo

da “lenda-Jesus”


-||-


Enlouqueças, pense que és mundo. Covário em corjas

Cintilantes.

Emendarei o fel nas construções de paraíso

(Rimbaud gargalha. Apaixonou-se por meu fim de sua época.)


quinta-feira, 14 de abril de 2011

OLHAR DE FURACÃO



















Revi seu olhar

No olho do furacão


Mas resisti


Seus lábios Calados

Fadados a me levar


Como um desatino


Seu corpo queimava

No sopro a me entreter


Mas me contive


Seus lábios falantes

Falavam palavras pelo ar


Me resguardei


Refiz meu altar

No centro do coração


E desisti


Calados meus lábios

Deixaram-se levar


Pelo desafio


Meu corpo teimava

Seu sopro entrever


Lhe contive


Meus lábios farsantes

Caçavam palavras no ar...


Me guardei


Remei no espaço


Mas era tão vago


O teu olhar


Que nada pude

fazer



Jair Fraga & Sonia (Anja). Ilustração: furacão Katrina.

sábado, 9 de abril de 2011

O ÚLTIMO ENREDO DE CHICO CHAPÉU






















...

>.


Cerrou

os olhos ontem depois de uma roda de samba , o poeta

chiquinho, conhecido pela alcunha de chico chapéu.

o bamba do samba da vela era cobra criada porreta,

jovem ainda vistoso, maciço de poesia, um bom menestrel.


Chico

tinha aquele andar de onça mansa suçuarana,

um gingado dançante de asas moles, mas um porte bacana.

ainda ontem o tinha visto num barzinho, na esquina do molejo

disse olá para ele e toma-mos uma branquinha com torresmo.


No

morro da malagueta, hoje a dor é mais ardida e veraz.

no meio da multidão, por entre acenos e lenços brancos,

escorregava o féretro do poeta Francisco da Silva Ferraz.


Foi-se

o Chico com seu chapéu e sua sombra incandescente,

iluminado. O nosso faquir africano sambou, brincou e foi brinquedo.

ao repique da bateria, o morro cantou seu último samba enredo



Calaça. Ilustração: Cartola.

terça-feira, 15 de março de 2011

SONETO IMPERFEITO























Soneto imperfeito
Gravetos pontiagudos
Perfeitos, espetados
No peito do próprio conceito

Fazendo do corpo
Saleiro de sangue
E na carne que dorme
O cerne que se consome

Mas e a meta do mote?
A métrica é o norte!
Enlace com corda puída

Sapatos versados de lama
Perdem-se na ponte caída
Enquanto se esvai a alma...


Daniel H. M. de Carvalho

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

ME PASSA A "MUÇARELA"!...



















- Me passa a muçarela.
- hein?
- a muçarela. Me passa?
Ela me olhou desconfiada.
- o que é muçarela?
- oras, aquele queijo ali.
Pegou o queijo.
- isto é mussarela.
Encrenquei.
- não! Segundo o dicionário é com cedilha. Muçarela. Me passa?
- o correto é passe-me.
Discussão logo de manhã. Haja saco.
- até o Cartola já teve birra da colocação pronominal. Deixa disso.
- deixe disso.
- hein?
- o correto é deixe disso.
Tudo bem, é importante unificar a língua, mas convenhamos: frescura é dose.
- eu tô me fazendo entender? Pára com isso e me dá a merda do queijo.
- me dê.
- arrá! – gritei. – é dê-me! O correto é dê-me a muçarela.
- tome. – ela fechou a cara e bebericou um gole de café.
Limpei a garganta e fiz meu olhar galã.
- você vai me dar mais tarde? – cafunguei em sua nuca.
- vou pensar. – desdenhou. Depois me olhou de cima. – só se você gemer sintática, morfológica e ortograficamente correto.
Pensei, pensei e respondi: - tudo bem. Agora me passa a mortandela! – e completei. - Você não vai tomar seu "iorgute"?


Giovani Iemini

domingo, 23 de janeiro de 2011

A ALMA ESTENDIDA























Poemas.
De que sou feito?
Ou do que me fiz?
Sou feito da não comunicação de
um ser que me levanta na ponte
do Infinito que nunca passa
Nem desaparece na contagem
dos meus dias.

Vivo em espaços dividido
sem quase nada, do que me sobrou
da alma esticada pelo tempo
e pendurada em um varal daquilo
que aprendi no Céu.

dos Anjos. Ilustração: A Crucifixão, de Marc Chagall.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A ORIGEM DAS CARTAS DE BARALHO























Alea Iacta Est - A sorte está lançada!

Júlio César

Muito se diz sobre a origem das cartas de baralho. Uns dizem que é cigana, outros defendem que é hindu, a versão mais aceita pelos estudiosos é de que é egípcia, mas vou mostrar aqui uma versão pouco conhecida. Por volta de 1200, existiam quatro pequenos reinos na Europa central, que tinham em seus brasões e bandeiras, respectivamente, um dos quatro naipes das cartas de baralho: o reino de Paus, o reino de Copas, o reino de Espadas e o reino de Ouros. Todos três igualmente fortes e hostis entre si, mas com características distintivas bem marcantes.
O reino de Paus era o menos rico entre eles, porém o mais virtuoso. Seu rei era um homem devoto e corajoso, que desposava uma rainha virtuosa e fiel ao marido. Seu valete era cavaleiro sagaz e leal a seu rei, e sempre estava acompanhado do ás, um jovem destemido e bom de briga. O reino era essencialmente agrícola, mas sua economia era estável _sobressaindo-se a produção vinícola _e os súditos amavam seu rei. O Natal e a Páscoa era lindamente festejados no reino de Paus.
O reino de Copas era mais rico e opulento. Seu rei era um glutão orgulhoso e alcoviteiro, que possuía um verdadeiro harém com muitas concubinas. Desposava uma rainha voluptuosa (ex-prostituta de luxo) e infiel. Seu valete era um galanteador de quinta categoria, que mantinha um caso velado com a rainha. Seu companheiro de farras, o ás, era beberrão, jogador e mulherengo cuja única virtude era saber lutar. Era ele quem valia o valete, quando este tinha de se confrontar com os muitos maridos traídos, que frequentemente o flagravam em delito com suas esposas. De resto, a economia do reino era em parte agrícola, em parte mercantil, destacando-se a produção de frutas, a salsicharia e... a prostituição, é claro!...
O reino de Espadas era uma tirania. Seu rei era homem soturno e cruel, desconfiado e sanguinário, que desposava uma rainha má e ardilosa. Esta tinha como fiel criado e amante, o valete, que era um assassino e torturador profissional. O ás era um bandido sórdido e desclassificado, que fugira das masmorras do reino de Copas. A economia do reino era instável, devido à exploração ostensiva dos súditos, com pesados impostos insidindo sobre camponeses e mercadores. Fora isso, as obras do reino eram realizadas pelo trabalho escravo dos muitos presos políticos. Estes, quando conseguiam fugir, pediam asilo ao reino de Paus, que sempre lhes concedia.
O reino de Ouros era o mais rico e poderoso entre todos. Seu rei era homem elegante e ambicioso, perito em negociações comerciais. A rainha era mulher refinadíssima, de alto trato social, que sabia dissimular, como ninguém, o caso que mantinha com o valete _que era um jovem galante e conhecido por seu talento alcoviteiro, assim como pela arte da esgrima. O ás era um mercenário conhecido, veterano de muitas batalhas, bem treinado na arte da espada, mas cioso dos butins de guerra. A economia do reino era essencialmente mercantil e seu povo era rico e orgulhoso.
As terras férteis do reino de Paus eram cobiçadas pelos outros três reinos. O reino de Copas invejava e rivalizava com o reino de Ouros e o reino de Espadas ambicionava tomar todos os outros três, assim como fomentava saques e ataques contra os demais. Sendo assim, as guerras eram frequentes. Quando os quatro reinos combatiam em campo aberto, faziam batalha. Quando armavam emboscadas, fazíam buraco. Quando se defendiam de assaltos de surpresa e cercos, faziam pif-paf. E quando só os acordos e indenizações resolvíam a guerra, faziam poker. Todos os quatro reinos se equiparavam em batalha. O reino de Espadas era expert no buraco. O reino de Paus era imbatível no pif-paf. Os reinos de Copas e Ouros, sempre preferiam resolver tudo no poker, sendo que o reino de Ouros era, indiscutivelmente, o melhor nesta estratégia.
Porém, todos os quatro reinos, em certo momento, possuíram algo em comum, sem que o soubessem: o mesmo bobo da corte. Este era um espertalhão de origem desconhecida, pois há quem defenda que era francês, outros, italiano. O fato é que era o pivot de muitas guerras _tanto como causador, quanto como apaziguador dos conflitos _servido sempre de intermediário e agente duplo entre os quatro reinos. Um belo dia, foi descoberto pelo astuto rei de Espadas, que o condenou à uma morte lenta e cruel: a roda! Levado ao calabouço, porém, subornou os desleais guardas do rei chamando prostitutas amigas suas. Segundo testemunhas, fugiu da prisão pelos portões da frente, vestido de mulher. Ainda suplicou por asilo ao rei de Paus, mas este não o concedeu.
Dizem que foi para a França, junto com um grupo de ciganos. Lá, teria confeccionado as cartas de baralho, para poder sobreviver de jogo e adivinhações. Baseou então seus naipes nos próprios símbolos heráldicos distintivos dos quatro reinos. Assim como desenhou os reis, valetes e damas, tomando como modelo as próprias pessoas que conhecera. Por algum motivo, nunca quis desenhar os ases. Ele também confeccionou as cartas de Tarot, em agradecimento aos ciganos, que o ajudaram a fugir. Teria inventado também todos os jogos de baralho, baseado nas estretégias usadas pelos quatro reinos.
Não se sabe exatamente como morreu. Alguns defendem que morreu pobre, doente e faminto, pedindo esmolas como mendigo, uma vez que de tal forma ficara conhecido como vigarista, que ninguém mais nele acreditava. Outros defendem que fora finalmente delatado aos agentes do rei de Espadas, que o teria assado, aos poucos, em óleo fervente. Seja como for, este esperto e vaidoso bobo ainda nos legou uma última herança, de sua ardilosa vida: o coringa! Que dependendo do jogo, pode valer tudo!... ou pode valer nada!...





Marcelo Farias - Estórias de Vovô Celestino.

sábado, 8 de janeiro de 2011

O FORMIGUEIRO

















Introduziu o dedo anelar no orifício, sentiu arder, mas não se deteve, cutucou de um lado, cutucou do outro, sentiu o calor subir-lhe, continuou, forçou de um lado, agora, do outro, sorriu, nada mais, retirou o dedo, cheirou, introduziu sorrindo novamente, fez movimentos giratórios, movimentos que alargaram o pequeno e apertado orifício, sorria largado, com que um sem culpa de nada.O sol se firmava sobre sua cabeça, abertamente quente, estampado como que todo num céu extremamente azulado, desanuviado.Um cheiro de coisa azeda pairou no ar, retirou novamente o dedo, coberto por um musgo escuro, o cheiro era agora insuportável, mas não o suficiente para impedi-lo de continuar seu ato.
O odor atingiu a casa, espalhou-se pelos aposentos, encontrou a cozinha, o fogão à lenha, o cozido escureceu, na janela de fronte ao poço, as violetas murcharam, o cavalo no estábulo do outro lado do quintal de terra relinchou, o homem de joelhos tateava o chão desgramado, desgramado nesse sentido não vem da palavra desgraça s.f. 1 infelicidade 2 calamidade 3 falta de consideração, reconhecimento – desgraçar (v. trans. e pron.), desgramado não é pessoa desgraçada, o prefixo des – latino – neste sentido vem de ação contrária àquela de sentido primitivo, gramado vem de grama designação de várias plantas forrageiras, ornamentais ou medicinais, do latim gramma..., claro que todo cidadão campesino ou citadino sabem perfeitamente disso, o chão estava desgramado a tal ponto que parecia a ovelha nua de lã em verão prematuro. Pois bem, o homem tateava o desgramado chão, como quem o tateia a procura dos óculos, ou tostão caído, por fim, sua mão encontra novamente a elevação, após encontrar a elevação deparasse com o orifício por ele alargado.
Introduziu o outro dedo anelar, e em forma de boticão alargou mais e mais o orifício no topo do pequenino monte de terra, alargou tanto que foi o suficiente para introduzir sua cabeça até os ombros, depois disso em movimentos giratórios, como o inverso de um parto, entrou os ombros e o do tórax para as pernas foi tudo mais fácil.
Como se fosse uma enorme minhoca foi o homem pelos conduítes sob terra, alargando os pequeninos canais construídos pelas formigas minúsculas, quanto mais se contorcia mais descia e mais descia, até que por fim encontrou-se em uma enorme galeria privada de luz, seus olhos depois de dias submerso na escuridão da terra, deram-se ao costume e sua visão tornou-se gradativa, ao passo que como um animal de hábitos noturnos passou a enxergar perfeitamente, duas bolas amarelas pregadas ao rosto sujo de terra, quando fome sentia, roia as raízes, e se sede tivesse, a umidade da terra ao esfregar do corpo o saciava, na enorme galeria deparou-se com as formigas sentinelas, que depois de interrogá-lo o levaram até sua majestade.
Uma vez diante a majestade o homem, ou minhoca, ou homem-formiga, ou homem-minhoca, ajoelhou-se. Magnificamente lá estava ela com seu enorme útero, fértil, carregado do mais delicado brilho, vital, vida, cheia de um quer que seja de sedutor, ele sentiu mais e mais o cheiro azedo que sentira quando estava tateando o desgramado solo de sua vida, uma lágrima vermelha escorreu de seu enorme olho amarelo, a rainha caminhou desajeitadamente em sua direção, estendeu-lhe a mão e foram a parte privada.
Ele a cobriu, passaram o restante daquela tarde se amando, como dois seres repletos, transbordantes do mais delicado amor, afinal descera ele aos subterrâneos da terra para encontrar seu grande amor (isso me lembra Orfeu...), depois de algumas horas ela carregada de larvas caminhou à outro canto da cova, e lá os depositou, ele deitou-se de lado, sem perceber, e, adormeceu.
As crias famintas procuraram o alimento que a rainha, supostamente havia deixado, não encontrando se deparam com o pai, rei e genitor de seus transparentes corpinhos, e dotados da suma ignorância devoraram-lhe até os ossos.


Flávio Mello

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

HÍBRIDO


















Híbrido.
Entre o eterno e o efêmero.
Sem ser o meio, só o termo,
os extremos.
Amor divino e querer terreno
te tenho.
Justo, fiel e absoluto.
O cão que venera o dono,
mesmo depois do abandono.
E dissoluto, humano, alma partida,
entre término e começo.
o lobo sempre em fuga.
etéreo, livre, liberto
em seu dia de matilha.

Ruth Brolio

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

OS ARGONAUTAS POUSARAM EM PLENA AVENIDA ATLÂNTICA























Seres do espaço sideral,
Humanos por essência,
Cometeram a suprema indelicadeza
De pousarem no meu quintal,
E amarrotarem as roupas que coloquei
Para secar
No varal.

Também acabaram com
A minha plantação de papoulas estéreis,
Assustaram homens e mulheres,
Afastaram os pombos mestiços,
Expulsaram amores, dores e vícios,
Além do viço que só a ignorância humana
Consegue entender.

Os Argonautas me fizeram esquecer de você,
Quando me disseram
-assim na bucha-
Que tudo o que na verdade machuca,
Esfola, arranha, luxa,
Faz, no fundo, no fundo,
Crescer em tamanho esse baita tesão.

Eu teimei, confesso:
Fiz até oração.

Mas não deu certo, não...



Eduardo Perrone. Ilustração: Gullivera, de Milo Manara.

domingo, 2 de janeiro de 2011

(...)























o ano novo
derrama-se na sala...

instala-se
— à vontade—
como um velho conhecido


Márcia Maia. Ilustração: cena de O Curioso Caso de Benjamin Button.