quarta-feira, 31 de março de 2010

CASO PASSADO























- Tróia está em ruínas! – Disse ele esgotando numa dose rala a vil quantidade da garrafa. – E eu vou afundando com ela, nesse fosso de xoxotas.
Lá vem! – Ela pensou. – Mais um discurso cheirando a malte sobre como tudo era melhor no passado. Sobre como nós, pobres coitados, tínhamos nascido tardes demais para inalar a boa coca do Studio 54 ou para ver algum hippie maluco em sua turnê. Segundo ele, nós "perdemos tudo que valia a pena viver para ver"!
- Tinha esse sujeito que usava uma faixa na testa! – Ele continuava. – Não é possível que nunca tenha ouvido falar. Ele tocava pro lado errado, e saía perfurando o som com umas notas assim agulhadas, entende? Ninguém tinha feito aquilo antes...
Era sempre assim. Ninguém nunca havia feito nada antes de sua geração revolucionária. O momento sublime da humanidade se estreitava naquele curto espaço de tempo, que seus olhos sorteados tiveram o prazer lotérico de ver. As coisas no mundo começaram a ser inventadas em seu período glorioso. Tudo que viera antes era quadrado. Tudo que viria depois degradante.
Então, alucinado, as pupilas pairariam sobre as reminiscências de um instante orgástico. Afetando sua dramatização, ele levantava as mãos espalmadas, como se estivesse de frente para o instrumento de seu delírio.
- A guitarra em chamas. – Ela completou sonolenta.
Decapitado em seu sonho, ele recompôs-se com um pesar auto-indulgente. Concordou quase inaudível:
- Exato!
Ela sorriu.
- Tem certeza que não quer fazer nada comigo hoje? – Insinuou-se, não tão incrédula quanto impudica.
- Grátis? – Ele perguntou livre de qualquer esperança.
- Nada na vida é grátis! Ainda mais vindo de uma moça com o coração partido. Ele suspirou apoiando-se sobre o balcão do bar. Ela, tão comovida, passeou os dedos por entre os grisalhos de sua têmpora.
- De graça você já tem o meu amor! Por todo o resto sabe que tem que pagar. – Falava com alguma sinceridade, como sempre foi o costume dos maus faladores.
Ele vacilava em sua descrença apertando no bolso da calça a aliança escolhida. Nem se quer pudera grafar-lhe o nome, por não saber se era o verdadeiro. Se existia uma boa hora, contudo, para fazer a proposta, esta era a tal hora. Afastando um pigarro da voz resolveu:
- Estou mijando nas calças. Preciso ir ao banheiro. – Covarde.
- Outra vez? Com essa será a terceira! – Ela forçava o espanto, sorridente.
- Pois então agradeça, por sua próstata inexistente e por sua bexiga de dezenove anos!
Agora ela gargalhava, vendo o sujeito caminhando qual um pato-marinho até os fundos do estabelecimento. O coração da moça cortava-se de afeto e culpa.
-Meu Deus! Como eu amo um derrotado!
Sozinha no balcão de bebidas permitiu-se pensar no prazer que sentia estanto com aquele homem. Pensou que seria bom tê-lo sempre ao lado. Concluiu por lógica, entretanto, que seu destino flácido já era bem definido. Pensamento que precisava afastar para se mostrar feliz quando ele retornasse de lá de dentro. Viria reclamando que "essa geração" era uma piada. Falaria sobre "esses meninos com franja no olho" e suas frescuras. Defenderia-se dizendo que não era uma questão de homofobia. “Os homosexuais que amei estão mortos”! – Rosnaria, para em seguida fazer um brinde às "grandes bichas do passado: Fred Mercury, Cazuza, Renato Russo", e quem mais ele julgasse "dar a bunda sem entregar o espírito". Os meninos de sua época "arruinavam generais". Seja lá o que isso quisesse dizer. Ela sorria como uma tola, mordendo o colar de bijoteria.
Um disparo soou dos confins do puteiro e todos estremeceram assustados. Ela apenas singrou veloz, sem cautela ou esperança, a distância até o sanitário masculino. Pólvora queimava o ar. Uma espessa poça rubra ia se dilatando por baixo de um dos boxes. Os olhos correram a constatar. Ele, sentado sobre a sentina, explodia em pequenos goles carmesins saidos de sua lapela. Uma pistola ainda fumegante pesava-lhe na mão direita. Louca de aflição, ela se enfiou naquela caixa imunda de desespero e dor. Bagunçando os cabelos dele, apertava a cabeça pálida contra o decote num lamento esganiçado e mudo. Pode ver do topo o anel de ouro brilhando entre os dedos da outra mão esquerda semi-cerrada.


Hector Leão

terça-feira, 30 de março de 2010

À VOLTA DAS COISAS























tenho medo das linhas
à volta das coisas

linhas de luas lentas
ao longe mas à lupa
ondas rápidas que escurecem
com falta de probabilidade

não existem

linhas quadradas de xadrez
penduradas no Anjo
e desfeitas em renda pela noite
à espera do tempo

entre a laranja e o resto do mundo

tenho medo que não existam
as linhas à volta do meu corpo


Joana Espain. Ilustração: vinheta de Musique Non Stop - Kraftwerk.

segunda-feira, 29 de março de 2010

IMAGINAÇÃO























- para a pequena Mareza.

.

Outro dia olhei pro céu
Era quase tardezinha
Encontrei dentro das núvens
Esculturas bem fofinhas

Tinha um gato com dois rabos,
Um peixe e uma florzinha,
Um coração meio flechado,
Uma banana e uma casinha

Gostei tanto de ficar
Assim deitada, olhando o céu
Que a noite chegou devagar
Me embrulhando com seu véu

Eu acabei adormecendo
E prossegui imaginando
Só que agora contava estrelas
Num céu, que eu olhava sonhando.

Allanna. Ilustração: foto de Gilberto Filho.

sábado, 27 de março de 2010

O AR ACHOCOLATADO























..Nunca houvera eu de esquecer
o tombo daquele inglês, caindo
de sua cadeira Luís XVI sem braço
entalhada a prata, quebrando o pescoço

batendo as botas. Digo, os chinelos
depois de tomar seu chá da tarde
adoçado por pedaços de Marshmallow

entre bombinhas, bolinhos e biscoitos
amanteigados cacos de porcelanas,
no hotel Berkeley Knightsbridge em Londres.

Nunca houvera eu de esquecer
o velho e bom inglês, Benedtt Robert
com ar achocolatado e pulverizado
pela fumaça de seu cachimbo Oxford!

Calaça

quinta-feira, 11 de março de 2010

O POETA PASTOR























deliro na paz dos sorrisos alheios,

pelo que sou poeta
e pastor de sonhos.

ando nu na parte do céu que a todos pertence.
ordenho versos selvagens. dou de beber ao amor.

recebo nuvens cansadas no alpendre dos olhos
e estico redes umbilicais para sonos confortáveis.

Jesus passou por aqui.
deixou-me um beijo de espinhos.

agradeço esperando que volte.

é carnaval!

um rojão de véspera assustou o rebanho!

corri atrás da primeira linha. ela desceu a rua principal e
tomou a ladeira da escola de samba em que morreu meu tio.
aboiei sinfônico. a linha não respondeu e a multidão
cambaleou sorriu e babou em minha cara. linhas outras
fugiram do céu e as nuvens se acordaram. uma tempestade
se formou e delirei trovões metálicos. versos em ajuntamento
anunciaram um poema imenso, de fronte negra, passadas largas,
com ameaça de morte. foram três dias da mesma hora de todo ano...

deliro na paz dos sorrisos alheios,

pelo que sou pastor
e apascento versos.

ando nu na parte do céu que a todos pertence.

Anderson H. Ilustração: Hieronymus Bosch - Jardim do Eden.

segunda-feira, 8 de março de 2010

















III

Não, eu não quero ver o murchar nu, desbotado, o DES – BO – TA – DA – MEN – TE, não quero ver o varão SOLITÁRIO e a FLOR nascente DES – FLORADA. QUE CORRA A SAUDADE INSANA TAL COMO O RIO enquanto rio diante espelhos em flor – maio – des – maio o perfume da grama que serve de cama tendo o tronco como morada, como morada, como morada...



Flávio Mello

sábado, 6 de março de 2010

YEMANJÁ, EM TODA SUA CONCRETUDE DE ESPUMA DO MAR


















Penso que a entidade
levou a flor
que eu estava com medo
de ofertar.
...
Penso que ela aceitou minha humilde oferenda
e veio beijar minhas mãos, em agradecimento,
levando as pétalas.
...
Foi um pacto entre espíritos,
à surdina,
como quem compra drogas ou troca vícios,
só olhares e os dedos entrelaçados.
...
Penso que o espírito saiu do mar,
leve,
e veio buscar aquilo
que eu tive medo de lhe entregar.
...
Ou talvez tenha sido a flor
que, Maria, sem vergonha,
se atirou nos braços do mar.
...
Ah! Yemanjá!
Perdão pela minha timidez.
O mundo todo parecia ouvir os meus anseios
e fiquei muda, assustada, como se fosse uma ofensa,
como se eu estivesse visada.
...
Mas por dentro o coração era sincero,
e a intenção me fez levar a flor
e pisar a areia quente de verão.
...
Oh! Perdão ao fraquejar
no pedido mais importante: Um grande amor!
Só entre estas linhas te posso confessar
o quanto quero oferecer e dar.
...
Ah! Aceite meus brotos como possíveis flores marinhas!...
Meus pés lambidos pela tua suavidade de mar
e minha mão num discreto cumprimento
Foi o que consegui lhe doar.
...
Mas, por dentro,
o desejo salgado de me molhar,
mergulhar, afundar, neste mar de proteção,
Espumar com suas ondas de sensualidade.
...
No fundo o desejo de nadar
e te entregar, pessoalmente,
a mais linda rosa vermelha
Que alguém poderia lhe dar.
...
SALVE RAINHA!...
E obrigada por ter vindo buscar...



Thathiana Treuffar