sábado, 3 de maio de 2008

O ÚLTIMO TIRO

















Netuno, traído e abandonado por sua companheira Cécila, que fugira com Hérbaro, o Escorpião _numa atitutude inumanamente inconcebível aos olhos de Zeus _fez cair, Netuno, sobre a provinciazinha, durante infindáveis dias, lágrimas finas de morte que chicoteavam e ricocheteavam fazendo tremeluzir os lampiões a gás de tons fúnebres e apastelados que se estendiam enforcados por toda extensão da principal avenida da cidade, onde à noite abrigam-se e embriagam-se os heróis em seus castelos e casarões...
Toma-lhe! A desmitologização. Ai aproximou-se uma mulher vestindo preto, portando a droga de um crachá e rádio transmissor e ela me intorrompeu dizendo:
_Não pode fumar aqui não, senhor!
_Não?
_Não.
_Nem cachimbo? É só um cachimbo.
É bom lembrar aos senhores que eu me achava naquela tarde de sábado num shopping e fumava meu cachimbo novo, enquanto aguardava a sessão das quatro e vinte começar.
_Há um espaço aqui do lado só para fumantes, mas eu não aconselho o senhor a ir, não agora, pois restam poucos minutos para o início da sessão. _Falou rapidamente.
Concordei apagando meu cachimbo. Fechei meu caderninho de notas, paguei a água e levantei-me, dirigindo-me a sala de projeção. Confesso que não aguentei ficar vinte minutos ali dentro. O filme era uma porcaria: gravidez na dolescência e auto-afirmação de uma geração de comedores de cheese burgers, além, é claro, de doses homeopáticas de moralismo anti-aborto. Ah, vão enganar outro! Deixei a sala e fiquei andando um tempo, perdido, olhando o preço das coisas nas vitrines. Entrei numa tabacaria e chequei o preço de alguns tabacos. Na verdade, queria era mesmo tornar a ver a atendente com cara de Helen Hunt. A mesma do filme As Gets is Possible em que se encanta com Jack Nicholson e o torna mais humano. Veio vindo ela em minha direção, com um leve sorriso em seus lábios e disse:
_Boa tarde!
_Boa tarde!
Olhou-me com certa curiosidade e indagou:
_O senhor não esteve aqui comprando um cachimbo?
_Sim estive!
_E o que foi isso no braço?
_Ah, sim, uma cadeirada, senhorita!
Como mentir para um anjo daqueles.
_Cadeirada?
_Sim, cadierada!
_E quem foi esse mau?
_O canalha do amante da minha ex-mulher, com perdão da palavra.
_E o senhor sabia que estava sendo traído?
_Aquela velha história: o marido é o último que sabe. Eu vagamente desconfiava.
_Errado e ainda fez isso?
_Pois é... é a vida!
Sorriu. Era branquinha e tinha um sorriso lindo. Não sou racista, podia ser negra, parda, ruiva, ou morena, mas quero me ater aos fatos, ela era branca sim e redimiria todos os meus pecados, além do mais, tinha a cara e o sorriso da Helen Hunt.
_E o que o senhor vai levar hoje? _Perguntou ela.
_Você comigo para tomármos juntos um bom chopp e apreciármos esta tarde tão agradável, que nos brinda lá fora com seu frescor vesperal.
Tinha de arriscar, ora. Sorriu novamente um sorriso encabulado e respondeu:
_Hoje não posso.
_Ora, mas por que? Que horas costuma largar?
_Hoje bem tarde, às onze.
_Humm... que tal amanhã?
_Também não dá.
Falávamos agora baixinho, como dois pequenos amantes a conspirar uma felicidade mútua. Eu fingia interesse pelos tabacos nas prateleiras. Mas eu estava imaginando os pelinhos louros de sua vulva rosadinha; a ternura dos lábios vaginais em contato com a minha língua, causando um jorro abissal de néctar dadivoso que compensa toda existência miseravelmente humana do homem. O mais vil de todos. O mais cachorro. O mais santo. O mais tolo. Também olhei para o volume de sua bunda sob a saia azul de linho e era um traseiro nem muito grande, nem muito pequeno, diria que médio, proporcional ao seu corpinho; e também os peitinhos, os tornozelinhos, tudo tão delicado e discretamente espetacular que encaixaríamos perfeito e teríamos lindos filhotes, e você ai do outro lado do papel vai dizer: machista! Só vê isso na mulher? Não, porra, também vejo o lado humano que justifica sua inteligência, como ela bem demonstrou no início ao preocupar-se com minha mão quebrada e ao ouvir minha história. Então ela notou minha tristeza de cachorro e disse:
_Semana que vem chegarão uns tabacos novos, tailandeses, que têm um aroma bem gostoso. Por que não passa por aqui na quarta para conferir?
Meus olhos, é claro, iluminaram. Ela sabia jogar.
_São bons mesmo?
_Garanto que são.
_Então virei a semana que vem para comprá-los.
_Vou esperar.
Antes de sair lhe disse:
_Alguém já lhe falou que você parece muito com a Helen Hunt?
_Quem?
_Helen Hunt, uma atriz americana. Ela fez Melhor Impossível, com Jack Nicholson.
Fez que não sabia. Tentei lembrar de um filme comercial e chato.
_Tornado! Você assistiu Tornado?
_Aquele do furacão?
_Este mesmo!
_É aquela?
_A própria! Mas precisa ver Melhor Impossível. Ela está amaravilhosa e ela parece muito com você. Até o sorriso.
_Sério? Vou acreditar, heim!
E então, nos despedimos. Talvez tenha cansado o leitor com esa passagem, mas precisava falar dela porque eu acabei voltando lá outro dia, fazendo valer o meu intento. Mas isso já é uma outra história. Seguimos?...
Segui calado e pensativo, preso ao frescor do ventre de uma tarde aprazível de sábado. Voltava a ficar solteiro e só. sobrevivente de um verdadeiro tornado que me deixou com alguns arranhões no peito e na alma, além de uma mão quebrada. Mas a vida prosegue mostrando sua grande língua. As coisas voltam a girar bem devagar ao meu redor: os carros, as vidas, as aves no céu. A avenida Djalma que se estendia infinita diante de meus olhos. Tudo tão devagar. A cidade ainda me soa belamente estranha. Parece estar sempre acordando de um porre homérico ou de uma hecatombe nuclear. Tudo ainda se regenerando. Um imenso estilhaço de coisas pairando no ar, se espalhando na terra. Via-me agora num bosque que mais parecia um bosque de mortos. este nome seria mais apropriado: Bosque dos Mortos. Andei entre eles com a minha doce arrogância e parei diante de um chafariz e ele me fez ficar inebriadamente triste e revoltado. Quem eles pensam que enganam construindo isso tudo aqui? Eu, por exemplo, não quero enganar ninguém. Nem a mim mesmo porque já sou feito de enganos, mas eles não têm esse direito. Estão transformando essa cidade num hospital. Os lugares recreativos em centros reabilitadores.
Parei num café que serviam cervejas e pedi uma. Não pensem que a vida é perfeita porque eu tinha no bolso os fósforos Paraná, que são absurdamente vagabundos e me fizeram pagar um sapo ao tentar, a muito custo, acender o meu cachimbo. Uma garçonete com cara de enfermeira, vendo aquilo, veio ao meu socorro.
_O senhor não acha melhor um isqueiro?
_Verdade. É bem mais prático. Quanto é?
_Tome este.
Olhei para ela e ela tinha uma certa graça. Mas parecia cansada. Acendi o cachimbo e uma fumaça densa e compacta subiu. E se espalhou. Um muro branco, oscilante como um sonho, me separando das outras pessoas. O cachimbo é mesmo um troço interessante. Ele concentra a ação da alma, transformando essa ação numa ação morna. Do outro lado, apenas sombras. Espectros de carne ocupando um mesmo espaço oco. Sentada no outro extremo desse espaço oco, havia uma senhora de certa idade a fumar elegantemente uma cigarrilha, e ela era uma sombra empertigada e solitária congelada no tempo. Passei por ela quando me dirigi ao banheiro e ela sequer se moveu. Também construía seu moro oscilante de densa névoa e aquilo me adoçou um pouco a alma porque eu não era ali o único construtor de muros.
Ao voltar à mesa fui recepcionado por um sátiro que brincava num ornamento de pedras sob a luz fosca de um abajur. Depois de capturar os insetinhos que rodopiavam em torno da luz, o sátiro mostrava ligeiramente sua língua atrevida e zombeteira. Achei que ele fazia parte da decoração do lugar _uma vez que me encontrava num bosque e, portanto, tomando admiração admiração pela única coisa que o lugar me proporcionara, chamei erroneamente a atenção da garçonete com cara de enfermeira, e perguntei à ela:
_Ele faz parte da decoração, senhorita?
_Quem moço?
_O sapinho ali.
_Ai, moço, onde?
_Ali nas pedras!
O sapinho agora mostrava sua língua para nós dois.
_Credo, não! Jaime! Jaime! Tem um sapo ali!
_É só um sapinho, senhorita. _Tentei acalmá-la. _Afinal isto não é um bosque?
Jaime apareceu. Era um mulato alto e forte e ele segurava uma vassoura. Mas Jaime tinha uma alma generosa porque riu e disse:
_É só um sapinho, sua boba. Pensei que fosse um sapo de verdade.
E enfiou-se de volta lá para dentro com sua vassoura, balançando a cabeça. O sapinho cansou da cena e partiu. E foi assim que de um modo estranho e repentino, fui acometido de ataques de riso. Ri baixinho. Era um começo de uma noite de sábado e eu tinha a certeza quase nômade que seria aquela uma noite longa e cheia de revelações. Olhei um instante para a senhora no outro extremo da mesa e ela ainda permanecia elegantemente congelada com sua piteira acesa. E era só o começo de uma noite de sábado. E eu desatei o riso.

***

Netuno foi chamado às pressas à presença de Zeus, que o colocou sentado diante de um grande tabuleiro de xadrez de cristal líquido, mostrando a ele o quão a vida é um jogo, e as pedras, quando erroneamente movimentadas, podem causar dilúvio nos olhos e no coração. Netuno ainda possuía os olhos vermelhos de choro e de vingança. Trovões ribombavam, furiosos, no espaço do céu. Fazendo tremer os pilares do grande templo.
Na presença de Zeus, as dores dos outros deuses eram pequenas. Ele, portanto, disse:
_Cedi-lhe a mortalidade e moveste as pedras erradas.
_Foi o amor, Zeus. O amor deles é profundo demais.
_Mas não vives nas profundezas?
_A profundeza deles é mais profunda.
_A tua é que é, e não a deles. Queres o castigo que dei a Atlas?
_Não! Não quero! O universo é pesado demais!
_Então aprendes a mover corretamente as pedras do tabuleiro.
Ai o celular vibrou sobre a mesa de cristal líquido e eu atendi. De novo interrompido. Sou sempre sou interrompido. Minhas divagações, meditações, minha paz, minhas linhas... Mas daquela vez foi diferente. A voz do outro lado era feminina e doce e eu a conhecia tão bem que demorei a acreditar.
_Mário, oi, é a Clarice!
Não acreditei, ajeitei-me na cadeira.
_C-Clarice! (A maldita gagueira).
_Surpreso?
_Pô! Muito! (Se vocês pudessem ver o meu sorriso, minha alma amarela saltitando...)
_Soube do acidente. Como vai o braço?
_A mão. Foi a mão.
_Como vai a mão?
_No frio ela doi um pouco.
_Vai sarar.
_Não, não sara.
_Não faz drama, Mário. Escreva!
_Não consigo escrever quando estou sentindo dor. A dor atrapalha.
_Dramático como sempre...
_Quanto tempo, desde aquele almoço.
_Usei as pétalas como marcador de livros.
_As rosas eram suas.
_Sei...
Um breve silêncio.
_E você? O que faz da vida? _Perguntei.
_Estou indo pra São Gabriel da Cachoeira. Residência médica.
_Sei. Saudades daquelas nossas tardes...
_Também.
_Quando voltas.
_Um ano de residência.
_E o livro do Garcia Marquez, leste?
_Adorei.
_Estou aprendendo a ter a paciência de Florentina Ariza.
_Literatura, Mário. Ninguém espera tanto.
_Acha mesmo?
_Acho.
_Espero você voltar.
_Um ano apenas. Nada se compara a 53 anos, 7 meses e 11 dias.
_Já lhe espero a um bilhão de anos, esqueceu?
Risos do outro lado. E um outro silêncio.
_Estás onde? _Perguntou ela.
_Num bar.
_Preciso desligar. Beijos, querido!
_Quando me ligas de novo?
_Um dia desses...
E desligou. Olhei para o céu enlutado e não vi estrelas, nenhuma. Mas elas estavam lá, em algum lugar. Escondidas. Rindo. Estrelas não choram. Um vento frio e forte soprava, enfiando seus dedos laminados na minha carne. O aparelho ainda tremia nas minhas mãos. Olhei para os lados. Àquela hora ainda havia pouca gente no Casteloe eu me senti imensamente compensado com o telefonema de Clarisse. Segundos de completa felicidade. Era tudo de que eu mais precisava naquele momento. Se existia uma mulher que haveria sempre de me causar alegria súbita na alma, essa mulher era Clarice. Presente nos momentos de fraturas. Expostas ou não. Um tiro. É. Clarice é como um último tiro que atravessa e não se aloja em canto algum da imperfeição do espírito. Fez subir a fumaça do meu cachimbo e respirei bem fundo o ar daquela noite fria. E rascunhei:
As pedras ali dispostas no imenso tabuleiro de xadrez de cristal líquido, mostravam nítida vantagem à Zeus, que naquele instante, movia sua torre para a casa 05, dando-lhe um mate ao rei. Netuno ficou um longo instante em silêncio. E disse:
_Procurei achar as variantes certas que justificassem a tentativa de traição e armadilha, mas não consegui. _Lamentou-se olhando a jogada. O tridente, entristecido, descansava ao seu lado.
_O amor tem um efeito sedativo e causa cegueira. _Disse Zeus enfastiado.
_Achei que o certo seria jogar com os peões, mas decidi calcular as varientes. _Justificou-se.
_Deixou a partida ser levada pelas ondas. Erro crasso.
Netuno levantou os olhos vermelhos:
_E quanto Hérbaro e Cécila, meu Zeus?
_Serão castigados, ambos. Agora vai! E não vaciles mais.
Ai começou a cair pingos de dores secretas do céu e eu cambaleei para dentro do Castelo, para junto dos outros heróis.



Márcio Santana. Manaus, 25.03.2008. Ilustração: Garçonete - Manet.

2 comentários:

MARCELO FARIAS disse...

Márcio, você é um dos maiores escritores da atualidade.

Duda de Oliveira disse...

Ah, gostei muito!