sábado, 13 de dezembro de 2008

OS SAPATOS

















É uma quinta-feira de julho e hoje eu sou o único homem na face da terra com essa cratera no peito. Clarice não me ligou. ainda bem que existem os sapatos. Sim, os sapatos! estão sempre presentes pra te confortar os pés e a alma. são sem dúvida os melhores amigos do homem. Sempre com voce, antes, durante e depois da sua morte. Ao contrário do que se pensa, não são os cães os melhores amigos, não: são os sapatos! Quanto mais velhos, mais solidários eles ficam. Vou à varanda olhar a rua antes de ir trabalhar. Depois do trabalho, já não faço muita idéia aonde vou. Quem sabe até ao bar mais próximo beber com meus sapatos novos; animar um pouco o meu dôce e pândego fígado. Olho o sol e ele me retribui com um sorriso caridoso. Faz sua parte lá de cima enquanto as coisas aqui embaixo se arrastam. ahhhh, se não fossem os sapatos! me sento aqui um pouco na varanda de casa e olho para eles. Sapatos novos! os vi expostos esta manhã na vitrine de uma loja na sete. estavam lá, pousados como pássaros. Dois belos e serenos pares de sapatos marrons que me acompanhariam desde então na minha árdua jornada de todo o santo dia. Sapatos para se usarem até a exaustão.
O funcionário se aproximou de mim e perguntou: "_Deseja alguma coisa, patrão?" "_Sim. Aqueles sapatos ali." "_Quanto o senhor calça?" "_38/39, eu acho." "_Vou pega-los." - Sentei um pouco e fiquei ali olhando para todos aqueles sapatos expostos na vitrine, como passarinhos. Me olhavam, me queriam. Se eu pudesse os levaria todos comigo. Não somos nada diante dos sapatos e isto é um fato. Toda nossa existencia miseravelmente humana não vale uma pedrinha dentro de um sapato. Meus prediletos morreram ao lado dos seus sapatos: Dickens, Dostoievsky, Genet, Bucowsky, Guimarães, Lima Barreto, Andersen, Artaud, uma porção deles. Antonin Artaud, por exemplo, morreu enquanto amarrava o cadarço de seus sapatos num quartinho, em Paris. Dickens achava seus sapatos um tédio, mas no fundo ele os amava. Pediu para ser enterrado com eles. Os sapatos são tudo na vida de um homem. Solidários, generosos e nos ouvem. Não falam, e claro, mas nos ouvem. Ficam ali paradinhos ouvindo as nossas dores. As dores do mundo. São os únicos que não se queixam da vida. São safos. O cara que os inventou tinha uma alma larga e generosa. Não custo a crer que os sapatos possuem alma, dada a relevância de seu caráter e de sua estética.
Ele tornou: "_Prontinho, meu patrão. Os seus sapatos!" Jás eram meus. Sorri. Perto, eram bem mais elegantes e austeros. Senti sua textura. Seu cheiro. Experimentei. Me senti leve e feliz. "_Então?" _Ele perguntou."_Couberam direitinho." Reparei que o vendedor calçava tênis em vez de sapatos, por isso perguntei: "_Voce não usa sapatos?" "_Não gosto de sapatos, patrão." "_Mas deveria." "_Porque deveria?" - Pensei um pouco. "_Porque os sapatos nos deixam mais humanizados." Sorriu novamente sem entender patavinas. Tinha um pouco mais de vinte. Foi divertido."_Essa é nova." _Ele me disse. "_Vou leva-los." "_r$45, com descontinho. "_Não me importei muito. Não me importo muito com o preço quando se trata de calçados. Dei mais uma olhadinha neles e me senti renovado. Foi como calçar uma alma nova. "_Acha que vou morrer aos 45?" perguntei pra ele. "_Que nada! o senhor ainda vai provar muitos sapatos." _Disse-me fazendo a notinha.Sai da loja calçando meus sapatos novos, radiante e feliz. Vejo-me aqui agora, sentado na varanda de casa, apreciando a tarde e curtindo os meus sapatos novos. Acho que não vou trabalhar, é. Ficarei aqui quieto no meu canto olhando para os bicos dos meus sapatos que me sorriem. Uma revoada de pombos grisalhos cruzam os céus da cidade em vôos rasantes. Pombos grisalhos como o tempo que se agrisalha. E Clarice que não me liga. Sabe o que eu acho? Acho que esses sapatos vieram em boa hora. Me ajudarão a cauterizar um pouco, a ferida que hoje eu trago no peito.


Para Mariza Marques. Manaus, 28 de março de 2007.


Márcio Santana. (blog: http://notasdeumdegenerado.blogspot.com/).

Um comentário:

MARCELO FARIAS disse...

"Humano, demasiado humano", Márcio!