Era mais uma daquelas noites vadiamente sujas em que eu me encontrava no balcão do bar Castelinho pedindo uma cerveja à Jarina que me pareceu não estar num daqueles seus dias. Ao seu modo, confessou-me gastricamente: "Eles tiveram hoje aqui olhando o Castelo. Parecem mesmo interessados. Não dá mais maninho. Vou mesmo vender o Castelo." Aquela mesma lenga-lenga. Tomei uma golada de minha cerveja e ela desceu enviesada. "Você tem mesmo certeza disso?" perguntei. "São onze anos maninho. Ah, cansei." Meu raciocínio tava um pouco lerdo naquele inicio de noite mormacento, mas mesmo assim argumentei: "Voce não pode vender o Castelo. Isso aqui é um patrimonio nosso." "Quem me garante isso?" Pensei um pouco. "Eu, ora!" Ela balançou a cabeça e disse: "Nem vem com as tuas, Márcio. Já tem gente demais interessada no imóvel e não vou dá pra trás." Olhei bem pra ela. Suas pálpebras gemiam cansadas e havia um jardim de rugas em volta dos olhos. "O que vão fazer disso aqui mesmo?" "Uma clinica psiquiátrica." Aquilo era mesmo sério. Aproximei meu rosto também canado de seu rosto plasmático e disse: "Se voce vender o Castelo, vai acabar com um pedaço dessa avenida. Com um pedaço de nossa história. De toda uma geração." Ela riu e disse: "Você não muda nunca, Márcio. Fica aí delirando, escrevendo essas coisas, quando vais crescer?" Deu de costas ainda rindo e foi até a pia esmagar os limões para a cachaça dos caras duros. Esmagava os limões com uma tristeza esmagadora. Pus-me ali firme no balcão frente à cristaleira espelhada olhando eu mesmo beber num exercicio cruelmente narcisista, quando ouvi uma voz atrás de mim: "Vou desistir de escrever!" Porra! Uma coisa de cada vez. Olhei através do espelho e vi Diego Moraes, o "Dean Moriarty" amazonense. Não podia aqui aludí-lo de outra maneira. Estava mais gordo. Gordo como uma "porca prenha" Por sinal, título de seu livro que ele não conseguia publicar. Talvez por isso resolvera mudar o título. Chamava-se agora: Saltos Ornamentais no Escuro. Ele pegou sua cerveja e foi se sentar ao meu lado: "E você - continuou ele - devia também dá um tempo na sua escrita. Esquecer um pouco dela. Viver mais..." Ofereci-lhe um dos meus cigarros e juntos começamos a expelir nossas fumaças que subiam harmoniosamente, toldando o céu de madeira do Castelo. Alguem finalmente alimentara a juke box com uma musiquinha mais decente. "Voce me entende, não é? Claro que entende. Olha no que eu me transformei: numa estética absurda. Não tenho namoradas, não consigo mais segurar na mão de ninguém, e as pessoas que me cercam são almas sebosas." Fiquei ouvindo ele sem atrapalhar. Melhor assim. As vezes me sentia assim também. Docemente amargo. Vazio. Insatisfeito. Sem o bom senso de cometer um suicidio. "As vezes sinto falta de mim. Do que eu poderia ter sido e não fui até aqui. Você não? Não se sente assim também ás vezes? Vem dizer que não. Se disser que não vai estar bancando o herói." Preferi não responder. Ficamos um tempo em silencio e depois ele me disse: "A escrita acabou. Ontem mesmo sonhei que caminhava numa trilha de gelo deixando uma pegada pesada de urso. Ficava para trás um azedume de zinco na ponta da língua. Minha escrita vem como pedaços; como um quebra cabeças que não consigo montar. Vou tentar cinema, é." Levantou e foi ao banheiro. Seus quase um e oitenta de massa disforme a caminhar caludicante pelo soalho do Castelo. Conheci Diego no bar ao lado do Castelo. Bebia e lia alguns de seus escritos para os amigos à mesa. Já nos farejávamos de longe. Na ocasião fez-me sentar à sua mesa e leu um de seus rascunhos. Ouvi atento o que lia, depois perguntei o que ele fazia. Tenho essa mania escrota de perguntar o que os caras fazem além de escrever: "O que voce faz além de escrever?" "Ah, já fui maqueiro, go-go boy, michê e comedor de pacas belgas. Mas quero mesmo é ser escritor, disso não abro mão. Posso ler mais alguns?" "Claro! Vai fundo!" Fiquei ali encantado ouvindo ele. O garoto tinha ginga de boxeador. Uma pegada certeira. O brilho de Satanás. Não tinha dúvida que eu estava diante de um escritor que prometia. Sabia disso desde o inicio. E agora aquela estória de desistir de escrever. Não censuro o garoto. Neste oficio, a vaidade, a falta de afago e as oportunidades são algo de que sempre precisamos. Ao retornar do banheiro, fizemos um pacto de silencio albino e ficamos simplesmente ali, sentados, expelindo para o alto a fumaça de nossos cigarros sem dizer absolutamente nada um para outro, até eu me encher daquilo tudo e deixar o lugar, sem contudo, ouvir ele dizer: "Uma alça é minha..." Vivia me dizendo isso, não para me provocar, mas porque tinha senso de humor. Ou talvez porque demonstrasse algum afeto, sei lá...
Para Diego Moraes, criador do círculo profético. Manaus, sábado 16/01/2010.
Márcio Santana. Ilustração: Henri Toulouse Lautrec e Lucién Metivet bebendo absinto - 1885.
2 comentários:
Anão... és um GIGANTE!!!...
Valeu pela postagem, Marcelo.
Que bom que gostou do texto...
acho que estou escrevendo mesmo um proximo romance...
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