terça-feira, 27 de janeiro de 2009

SEM DENTES PARA AMANHÃ





















Formularei perguntas irremediáveis para bons cristãos.
Para que, em seu dever fervoroso, eles se traiam e sejam ainda melhores.
Pecadores sorteados, alguém veio lhes lamber os pés.
Cada chaga em iluminação.
Cada dorso seduzindo o chicote, que em seu estalo mora a ternura retalhada.

Algumas pacientes histéricas vieram uivar e me trazer doçuras nas emancipações de minha janela.
Mastigam cacos de minha frustração científica e sensorial.
Sou um pedaço de caco nervoso, sem efeito e elas me mastigam.
Esses dentes arquitetam minha realidade.

A paciente desdentada morde seus dedos, tentando arrancar alguma seiva.
Seu comportamento consiste em arrancar sua própria essência.
É conhecida como "Leoa". Ela distribui tarefas com os dentes para suas colegas e sentencia as fracas.
Paga-se com perpetuação do sintoma. Solidão.
Leoa rói cada ponta do sol das minhas manhãs e amarga meu café sem cura.
Nunca saberia o que era a felicidade, sem esta paciente me flertando, atracada ao meu corpo, babando no meu pescoço.
Jamais saberia o significado da redenção.
Apenas queixas, convulsões, o furacão nu do sofrimento boiando nas minhas pranchetas.
Meu avental branco como a armadura de uma guerra particular tão ou mais densa, das quais eu brincava de lutar.
Ninguém saberia dos meus tremores na sala de faxina.
Nem que eu roubava tranquilizantes no início da carreira.
Guerrilheiro do "CID-10", o livro pai dos diagnósticos das patologias mentais, tinha toda uma pátria a defender,
enquanto era consumido pela minha doença.
O pai não falava sobre ela. Era temerosa e desconhecida. Era sublime.
Eu driblara meus conhecimentos, para me enganar, o grande pai fora submetido à minha sabedoria doentia.
Lambia os beiços, sob o olhar de Leoa, ao sol do pátio sujo.
Um ensaio de sorriso, para minha rendenção.



Rita Medusa. Ilustração: Jack Nicholson em cena de O Iluminado.

2 comentários:

MARCELO FARIAS disse...

Louco! Lindo! É só o que consigo exprimir...

Ganso neurótico disse...

belo texto! me sinto num andajá de paus.