sábado, 31 de janeiro de 2009

OS REVOLUCIONÁRIOS DA CONSCIÊNCIA















Andreas Baader e Gudrun Ensslin (Exército Vermelho) aguardam sentença por terrorismo, em 1968.


Mantém o povo sempre isento do conhecimento e livre do desejo,
para que o inteligente nunca ouse agir...

(Lao Tzé – Tao Te King)

Durante décadas, o caso Doutor Silvana foi um mito para a impressa e para gerações de jovens. Desde que foi noticiado pela primeira vez, em fevereiro de 1971, até o início dos anos 90, ele tomou proporções imaginárias que beiram os filmes da série Arquivo X. Verdadeira lenda urbana, no entanto, ele era absolutamente desconhecido para a atual geração de jovens. Porém, esta situação mudará, pois Adalberto Furtado Torres, um dos pivôs do caso, hoje com 58 anos, resolveu finalmente falar à imprensa. Segundo ele próprio, para enterrar o mito. Sentado tranquilamente em sua sala de estar, ele começa em tom natural:

_Eu conheci o Daniel em 1960, ele era meu vizinho. Foi em 64 que a gente começou a pensar toda aquela loucura: a Revolução da Consciência. Na época, ele tinha 17 e eu 15.
_Quem de vocês teve a idéia?
_Foi o Dani.
_O senhor concordou de cara?
_Sim, até porque no início era pura viagem de adolescente, nada mais. Ele começou a falar da evolução humana, da evolução da mente, do iluminismo, de Auguste Comte, de Nietzsche e eu fui no embalo. Sou de Peixes, sempre fui sonhador, imaginativo.
_O senhor poderia explicar, em linhas gerais, o que era a revolução consciência?
_Era o seguinte: entendíamos que a história da humanidade era uma história da evolução da consciência, da mente _que é uma idéia que o Dani desenvolveu lendo Hegel. _Entendíamos, porém, que havia indivíduos mais desenvolvidos, que eram os agentes principais, conscientes, da evolução... (pausa para respirar) _que já é outra idéia que o Dani pegou emprestada do Comte e do Nietzsche.
_O Deus de Comte e o Super Homem de Nietzsche...
_Exatamente! Nós fundimos estas duas idéias.
_E como seria, efetivamente, a revolução?
_Pensávamos em reunir um grupo de “evoluídos”, pessoas que, como nós, sabiam do sentido da história e da humanidade. Esse grupo se desenvolveria em silêncio, estudando, lendo, trocando idéias e, posteriormente, daria seu primeiro passo, entrando nas instituições para saber como conduzi-las em direção à “evolução”.
_Isso me lembra, guardadas as devidas diferenças, é claro, os anarquistas e a Escola de Frankfurt.
_De fato, há uma re-elaboração das idéias deles sim. Nós lemos um pouco sobre eles também. Não muito profundamente, mas lemos. Porém, não concordávamos com a idéia de que a humanidade evoluía a partir do desenvolvimento dos meios de produção. Acreditávamos que ela era conduzida por mentes mais evoluídas.
_Pelo visto, vocês liam muito?
_Mais ele. Eu lia mais ficção científica, lia muito Morris West e Arthur Clarck. Ele lia também, por isso a gente fez amizade.
_Quando conseguiram formar, efetivamente, um grupo de “evoluídos”?
_Em 66.
_Vocês tiveram a idéia em 64, por que o grupo de “evoluídos” só surgiu em 66?
_ Pelo simples fato de que foi neste ano que o Daniel entrou na faculdade de Filosofia, onde conheceu a Valéria. No colegial não tínhamos com quem trocar este tipo de idéia.
_Valéria teria sido a primeira “evoluída” que vocês encontraram...
_Sim. Ela foi a primeira pessoa com quem o Dani fez amizade na universidade. Eles sentiram uma sintonia mútua desde o início. Não demorou para começarem a namorar. Foi ela quem realmente deu impulso para tudo começar.
_Por quê?
_Ela nos apresentou conceitos novos, importantíssimos para consolidar nossa utopia: a expansão da consciência pelo LSD e o auto-conhecimento pela prática do yoga. A idéia de homens superiores e inferiores do I Ching, enfim (gesticula com os braços como quem quer abarcar muitas coisas em volta). Valéria estava experimentando coisas concretas. Tão logo o Dani a conheceu na cantina da faculdade e começou a falar da “Revolução da Consciência”, ela já foi falando de ácido lisérgico, Timothy Leary, pensamento védico e tudo o mais.
_Humm... ela era uma hippie...
_Podia-se dizer que sim, mas eu a definia como beatnik, na época. Os amigos que ela trouxe para compor com a gente, mais tarde, como o Anderson, o Walmir, o Schubert, a Leni, seguiam mais o feitio hippie, de cabelos compridos e calças boca-de-sino. É claro que eles contrastavam muito comigo e com o Dani, que éramos dois garotos bem comportados, dois nerds, que usavam óculos, cabelo bem penteado e roupas formais. Eu então, que sempre fui gordinho, nem se fala... (rindo).
_Pelo que vejo, Valéria mudou o jeito de ser de vocês...
_Não o de vestir (riso)!... O de pensar certamente. Começamos a ler Adous Huxley, Herman Hesse, Jung, o Bhagavad Guita... Nosso gosto musical também mudou. Começamos a ouvir Beatles, mais especificamente o Revolver (1966). A partir de 67, viramos fãs do Pink Floyd, que era uma banda que só maluco ouvia naquela época.
_O que vocês costumavam ouvir antes?
_Música erudita, jazz... Eu, particularmente, gostava de Bossa Nova. O Dani adorava Beethoven. Tentei fazê-lo gostar de Bossa, mas ele malmente gostou de algumas composições do Vinícius.
_Depois de Valéria compor com vocês, como os outros foram entrando no grupo?
_Depois dela entrou a Lili, que estava começando a namorar comigo. A Lili não era uma intelectual, o Dani relutou em aceitá-la.
_O que fez ele aceitá-la?
_Foi a Valéria. Ela o convenceu a conversar com a Lili antes de tomar sua decisão. Ele só a aceitou quando ela disse que adorava A Revolução dos Bichos, de Orwell. O mais engraçado é que ela entendia o livro como se fosse uma fábula (rindo).
_E os outros?...
_Quando Valéria trouxe LSD pela primeira vez, ela já veio com o Anderson e o Schubert a tira-colo. Até porque eram eles que conseguiam drogas.
_Vocês então se reuniam para usar drogas...
_(Me interrompendo) Não apenas! Nós realizávamos leituras de textos filosóficos e sessões de meditação. Fora as discussões sobre política. Em um determinado momento chegamos a treinar a telepatia. Usávamos LSD apenas nos fins de semana.
_Qual era a visão política de vocês?
_Concordávamos com Platão, no que tange a achar que o mundo deveria ser governado pelas mentes mais evoluídas, pelos filósofos. Para nós, a democracia só deveria existir entre os “evoluídos”, que eram quem realmente entendiam seu significado. Não concordávamos, de forma alguma, com a ditadura do proletariado de Marx. Como poderia os peões, os homens inferiores, promoverem qualquer progresso? A divisão da riqueza também deveria ser desigual. Os homens superiores sabem usar a riqueza para promover o progresso, os inferiores gastam a riqueza apenas consumindo, pois não possuem o impulso para a utopia, mas apenas para a auto-satisfação, como os animais.
_Mudando de assunto... A família Daniel Benezar, sobretudo sua mãe, dona Glória, culpa Valéria por tudo o que aconteceu. Ela afirma que foi Valéria quem o fez usar drogas e perder o juízo. O que você diz disso.
_Usar drogas pode ser, mas como eu lhe disse, a idéia da revolução já existia e estava muito madura na cabeça dele. Eu diria que Valéria foi só a pessoa que deu um chão para nós andarmos, antes vivíamos nas nuvens.
_Foi dito que sua mãe proibiu as reuniões, quando soube que estavam usando drogas.
_Sim. Foi na segunda vez que usamos. A partir daí, nos encontrávamos no apartamento em que Valéria morava com a mãe, dona Isadora.
_Valéria não era muito bem vista pelas pessoas, não é?
_Não mesmo. Dona Isadora, era mãe solteira, o que pra época era um escândalo. Além disso, todos sabiam que Valéria não era mais virgem e que até tivera casos com homens mais velhos. Quando ela começou a namorar o Dani, a tia dele, mais uma vizinha dela, o chamaram para uma conversa, para lhe “abrir os olhos”.
_Isso, pelo visto, não adiantou.
_Não, o Dani tinha uma cabeça muito diferente. Antes de Valéria, seus namoros acabavam muito rápido, porque as garotas achavam que ele era louco, que tinha problemas mentais.
_Quem delatou vocês?
_Até hoje acho que foi o Bruno. Mas isso não importa agora. Hoje sei que tudo degringolou quando entraram os amigos dos amigos de Valéria, a partir do final 67. Esse foi o problema, gente que não tava realmente antenada com a proposta.
_Por que o senhor acusa Bruno Marques?
_Porque ele brigou feio com o Dani. Na verdade ele era afim da Valéria e só queria um motivo para ferrar o Dani.
_Quando tramaram a fuga?
_Tão logo a polícia apareceu na casa do Dani, em 69. Ele não tava lá, na hora. Aliás, nenhum de nós estava em casa. Estávamos todos na faculdade. Nossa sorte foi que o Rubens, um visinho nosso, viu a polícia chegando e correu pra nos avisar quando já estávamos a meio caminho do conjunto. Sabíamos que a polícia devia estar nos procurando em nossas casas, por isso, fomos para um prédio abandonado que conhecíamos. Onde antigamente era a fábrica da Coca-Cola.
_A polícia coagiu os pais de vocês?
_O que você acha?... Eles pegaram leve com os pais do Dani, não os torturaram, nem levaram para a delegacia. Só intimaram e fizeram aquela pressão básica. Com meus pais e os da Lili também foi a mesma coisa, graças a Deus. Na verdade, no início os policiais visavam a Valéria, ela quem tava posando de subversiva. Dona Isadora, mãe dela, foi presa e torturada. Não morreu porque deu os nomes dos amigos da filha. E eles abriram o bico quando foram apresentados à máquina de choque.
_Como conseguiram passar dois anos fugindo?
_Nem eu sei. Passamos fome, privações. Conhecíamos muitos lugares abandonados, foi o que nos salvou. Vivíamos basicamente de roubo. Naquela época era muito fácil roubar um supermercado. Valéria era expert em esconder coisas no vestido e na bolsa. Ensinou a arte para a Lili também. Roubávamos coisas que passassem despercebidas. Mas um dia a fome apertou pra valer e a gente resolveu arriscar pegar mais, foi quando fomos presos.
_Isso já foi em janeiro de 71...
_Sim, veja como conseguimos ir longe demais.
_Vocês foram torturados?
_Sim.
_Até hoje o exército admite que somente Daniel foi torturado.
_Todos fomos (categórico). Mas o seu Alceu, pai da Lili, que era advogado, agiu rápido e por isso eu e ela fomos poupados de maiores maus tratos. Mas eles levaram o Dani pra geladeira. A Valéria chegou a ser estuprada na prisão.
_Durante as sessões de tortura, qual era a principal coisa que os policiais queriam saber?
_Ah, o de sempre: se a gente era ligado ao partido comunista, ao Lamarca, essas coisas. Queriam saber que revolução era aquela que a gente tava tramando. Não adiantava explicar muito, pois eles não entendiam nada e davam mais choque e porrada.
_Sofreram algum tipo de vigilância, ou coação após serem soltos?
_Fomos proibidos de falar do que nos aconteceu no DOI-CODI, sob ameaça de sermos novamente presos.
_Daniel Benezar foi morto, ou suicidou-se na cadeia?
_Ele se matou. Desde o início nos falou que se as fosse pego, se mataria. Costumava dizer que jamais daria aos homens inferiores o gosto de o matarem.
_Então o que a polícia disse é verdade?
_Sim, é bem provável que ele tenha bebido Detefon mesmo, como foi dito na época.
_O senhor chegou a falar com Valéria após ser solto?
_Não, minha família proibiu. Mas ela mandou uma carta para mim onde dizia que ia se juntar ao Dani. Isso foi em 72 e ela já tava no hospital psiquiátrico. Foi quando ela se enforcou com o lençol.
_A ligação entre eles era bastante obsessiva, pelo que vejo...
_Não vou dizer que eles eram o casal mais normal do mundo, mas acho que a decisão dela de se matar também foi muito motivada pelas torturas que ela sofreu no DOI-CODI e pelo eletro-choque que aplicavam nela no hospital.
_Liliane de Oliveira Martins também sofreu tratamento psiquiátrico...
_Sim, mas com ela foi diferente, ela não levou eletro-choque. Ela foi pra casa e entrou em parafuso, principalmente depois que soube que a Valéria tinha se matado. Eram muito amigas. Ela foi internada várias vezes entre 73 e 77. Depois disso, ela se enclausurou e evita falar comigo até hoje. Só sei que casou e hoje tem netos, nada mais.
_O senhor também foi internado...
_Sim. Também escapei do eletro-choque, mas desenvolvi transtorno obsessivo compulsivo. Eu não saia na rua com medo de ser preso. Às vezes fugia para casa, pensando estar sendo perseguido, ou vigiado.
_Quanto tempo durou seu tratamento?
_De 73 até 77 também, igual a Lili.
_Como sua família, sua esposa, seus filhos, vêem o caso hoje?
_Durante anos, a Tábata evitou comentar qualquer coisa com nossos filhos. Quando ela me conheceu, em 78, ela já sabia da história pela impressa. Na verdade, foi ela quem fez eu me abrir novamente, conviver com as pessoas, levar uma vida normal.
_Durante décadas vocês foram um mito. Ao longo dos anos, até início dos anos 90, as revistas e programas de TV, vira e mexe, reviviam o caso. Como você encarava isso?
_Mantive silêncio durante todo esse tempo por orientação de meu psicólogo, de minha família e meu advogado. Resolvi falar agora porque hoje tenho equilíbrio emocional para falar do assunto.
_Adalberto Furtado Torres hoje é simplesmente um odontólogo. Seus pacientes sabem do que se passou com o senhor?
_Hoje não mais. Talvez alguns se assustem quando lerem esta reportagem. Antigamente, meus pacientes mais velhos mantinham um respeitoso silêncio. Havia um tabu em comentarem o caso.
_Este tabu era só com os pacientes?
_Não, era um tabu familiar também.
_Quando ele foi quebrado?
_Eu mesmo o quebrei. Um dia fui conversar com meu genro, Paulo, que então era noivo de minha filha, Ângela. Ele comentou que tinha lido algo a respeito do caso e eu soltei o verbo. Aliás, já vinha tendo vontade de fazer isso desde 99.
_Por que só falou à imprensa agora, em 2007, senhor Adalberto?
_Porque minha família era contra que eu falasse. Sobretudo a Tábata. Eles dizem que o que aconteceu é uma página virada em minha vida, algo que me fez sofrer, que devo esquecer. Mas hoje quero deixar tudo em pratos limpos, enterrar o mito.
_Está sendo difícil fazer isso?
_Hoje não. Não sofro mais quando eu lembro. Exatamente por isso que estou enterrando esta história, não dói mais...

Um comentário:

Anônimo disse...

Conto extremamente bem construído!
Os diálogos são reais.
A história não me interessa, mas me prendeu pela excelente forma que foi escrita.
Marcelo, vc arrebentou!